Dilemas do futuro
27/02/12 07:16Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai*
Há dois finais de semana, o banco central da China anunciou a redução do depósito compulsório dos bancos, um movimento que deverá injetar 400 bilhões de yuans (US$ 64 bilhões) na economia. O governo chinês está cumprindo o que prometeu: vai lidar com desaceleração do crescimento pela via da expansão do crédito e de menor custo dos empréstimos para as empresas. Essa é uma boa notícia para os empreendedores. Terá dois impactos imediatos: aliviar a situação de projetos parados ou cujos pagamentos estão em atraso e contemplar empresas que não foram beneficiadas com o aumento dos investimentos públicos na crise de 2008.
O motivo de maior apreensão do empresariado chinês, no entanto, não é exatamente o curto prazo. A partir do início de 2013, uma nova liderança politica comandará o país. E, se já se pode antecipar com alta dose de segurança quem serão o novo presidente e o novo primeiro-ministro _o atual vice-presidente, Xi Jinping, e o vice-primeiro-ministro Li Keqiang, respectivamente_ muitos, pelo menos no segmento privado, perguntam-se como a China vai enfrentar seus desafios econômicos e sociais e quais serão as novas regras a vigorar. Há quem afirme até que uma parte da saída de capital do país no último trimestre de 2011 já tenha sido reflexo de apreensões quanto ao futuro.
No próximo mandato, os chamados “taizidan”, príncipes do partido, estarão no comando. São filhos de figuras de peso no Partido Comunista _daí serem chamados assim_ que experimentaram , em seu tempo de vida, condições muito melhores de bem-estar do que os seus pais. Viveram desde a adolescência na China já aberta, modernizada e bem-sucedida. Têm um background acadêmico mais variado do que seus antecessores, quase todos engenheiros. E, de uma maneira, geral, conhecem melhor o mundo externo.
O próprio Xi Jinping acaba de voltar de uma viagem aos EUA em que o grande destaque foi a celebração de seu retorno a Iowa, local que visitou em 1985. Sua filha estuda em Harvard, fato impensável no passado. Muitos dos líderes anteriores foram ao exterior pela primeira vez depois que assumiram o governo e apenas em visitas oficiais, quando se vê pouco a realidade. A grande pergunta é: a China moderna opera como incentivo ou desincentivo para novas reformas?
Há, creio, dois possíveis enfoques para o exercício de especular sobre o futuro. O primeiro é que é inevitável avançar corajosamente. Se a China não assumir com a audácia de antes os desafios que tem diante de si, pode andar para trás. Além disso, o mundo conta com o crescimento e a abertura chineses. Sem eles, a economia internacional na próxima década terá pouco gás, já que os EUA e os europeus estarão envolvidos num grande esforço de arrumação da casa. O segundo enfoque é que tudo caminhará paulatinamente e de forma equilibrada na direção do que já se sabe. A era das reformas radicais ficou para trás. Ademais, maior liberalização no momento poderá aprofundar as distâncias sociais, favorecendo a voz dos líderes que crêem que a China se afastou demais dos fundamentos do comunismo.
Ninguém duvida de que certas reformas inevitavelmente prosseguirão. O processo de urbanização, por exemplo, e com ele a incorporação de um crescente número de pessoas à economia de consumo. Mas há reformas que têm impacto de peso sobre a organização do quadro político, da economia e mesmo da cultura. A abertura da conta de capital, anunciada há pelo menos um ano para ser feita em cinco anos, a internacionalização do yuan, a revisão da política fiscal de modo a reduzir a dependência dos municípios da venda de terrenos como fonte de ingressos, a flexibilização da política do “hukou”, que limita a mobilidade geográfica da população, são exemplos de reformas que, se forem implementadas ou ganharem nova velocidade, alterarão radicalmente o país.
Pela política do “hukou” as pessoas sem renda própria garantida só podem se mudar de município se tiverem emprego. Mesmo assim, têm limitações para trazer a família e nunca gozam exatamente dos mesmos benefícios dos locais. Contribuem para a seguridade social, mas não têm direito a aposentadoria do mesmo valor e pagam mais caro por alguns serviços públicos. Os chineses, sempre muito arraigados à cultura do seu lugar, estão acostumados a isso e a política tem pelo menos um efeito positivo: desestimula a urbanização desorganizada que, no caso da América Latina, criou bolsões de miséria e muitos outros problemas nas cidades.
Em época de mudanças, quando o futuro não está definido, é sempre prudente para os politicos falar pouco ou evitar os temas polêmicos. É assim no mundo inteiro. Na China, a diferença é que se fala pouco em qualquer circunstância. Como a escolha dos novos líderes se dará em outubro, não se esperam grandes mudanças em 2012, nem grandes anúncios ou manifestações sobre os rumos a seguir.
Mas, num artigo recente, o vice-primeiro-ministro Li Keqiang deu o tom do que se pode esperar da nova liderança. Em suas palavras, levando-se em consideração as condições doméstica e internacional, “a China tem de acelerar o processo de mudança do padrão de crescimento e reestruturação econômica e tem de abrir mais a economia”. Li fixou como primeira prioridade aumentar a demanda doméstica por meio de incentivos fiscais, tributários e creditícios para fomentar o crescimento em tempos internacionais difíceis, quando as barreiras protecionistas aumentarão no mundo.
Do discurso à prática há sempre muitos problemas. Para aumentar o consumo, por exemplo, o governo terá de ampliar o acesso ao seguro de saúde e aumentar a credibilidade do sistema de aposentadorias. Este último ponto não é simples. Os cidadãos chineses não acreditam no sistema. Preferem deixar que seus empregadores registrem um salário mais baixo do que pagam e ofereçam “cash” um adicional salarial que fica fora do alcance do fisco e das obrigações previdenciárias. Ou seja, os cidadãos preferem, eles mesmos, poupar, o que também convém às empresas onde trabalham. É uma questão de confiança, que está alheia ao que quer que o governo determine como política.
Seja como for, é o sentido de direção das reformas o que conta no momento para tentar entender a China futura. Transformar a sociedade é mesmo um processo mais lento e está vinculado a mudanças geracionais. A geração que chegará aos 30-40 anos na década em que uma nova liderança política estará no comando é composta, em larga medida, de filhos únicos, muitos acostumados a viver em cidades modernas. Terá um comportamento naturalmente distinto do das gerações anteriores. Talvez esteja aí, tanto quanto nas políticas governamentais, o diferencial que vai dar o tom de para onde irá o país.
Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.
*A partir desta segunda-feira, o embaixador Marcos Caramuru de Paiva passa a escrever quinzenalmente para o blog.
Concordo com varios pontos do artigo. Porem essa sociedade se transforma numa velocidade muito maior do que imaginamos. No curto prazo receio um aumento da inflacao (6% no ultimo ano) com esse ingresso extra de liquidez. No medio e longo prazo, eh bom olharmos a ultima ata do plano de metas chines, que estabelece como prioridade a melhoria na distribuicao de renda. De fato, o sistema previdenciario era ruim e muitas empresas simplesmente nao registravam seus funcionarios. Porem no ultimo ano temos visto uma avalanche de empregados e empresas procurando pelos registros formais. A fiscalizacao aumentou, e muito. No ultimo levantamento, houve apontamento de aumento salarial de 20% no ultimo ano. Creio que nao foi tudo isso, e sim um ajuste exatamente desses salarios que eram pagos “por fora” e agora o sao “por dentro”. A ver, acredito muito na economia de mercado e no movimento que ja se inicia principalmente no sul da China: a migracao para areas ou paises (Vietnan principalmente) com Mao de Obra mais barata.
Interessante uma frase quase despercebida no texto…”quase todos engenheiros”
E em nosso congresso nacional quase todos advogados…