A contradição fundamental e a quinta modernização
28/03/12 22:41Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro
Para os idealizadores da doutrina comunista, as contradições sociais representam um dos pontos fundamentais de toda sua teoria. Mao Tsé-tung especificamente dedicou especial atenção a esse ponto e sempre soube explorar com maestria o potencial destrutivo dessas contradições para levar o Partido Comunista e a revolução à vitória na China e também para manter o poder.
Descrevia as contradições não antagônicas como aquelas existentes entre as forças que apoiavam o partido e a revolução e como contradições antagônicas aquelas existentes entre o partido, a revolução e seus inimigos.
Dedicou às contradições especial atenção em sua obra e na própria atuação do partido. Mesmo as contradições existentes entre o Partido e essas forças teriam de ser administradas, pois teriam potencial de se transformar em antagônicas, quando então essas forças passariam a ser consideradas inimigas.
Da mesma forma, os inimigos com suas próprias contradições não antagônicas internas poderiam ser incorporados entre as forças de apoio e não antagônicas em relação ao partido e à revolução se essas contradições internas pudessem ser exploradas pelo Partido e seus dirigentes.
Embora não seja um especialista em política chinesa, observo que, tanto no campo interno como externo, a China e o partido continuam a explorar com maestria essas contradições em beneficio de sua permanência no poder e na recondução da China à posição de destaque que sempre ocupou no cenário mundial até o século 17.
Apesar das contradições entre as diversas classes sociais dentro da própria China e entre a China e países estrangeiros o Partido tem conseguido manobrar com perícia, galvanizando o desejo de todo chinês de retomar a posição da China como o Grande Império do Meio.
Essa capacidade de administrar suas próprias contradições e as contradições entre seus inimigos talvez seja o ponto forte do Partido Comunista chinês. Eu diria que a grande tarefa do partido e da China é transformar as contradições antagônicas e não antagônicas e assim incorporar cada vez mais forças de apoio ao Partido.
Esse exercício requer uma alta dose de pragmatismo e gradualismo em sua execução. Pragmatismo para distinguir entre o que realmente é antagônico e não antagônico e gradualismo para caminhar passo a passo, testando o caminho, pisando nas pedras no fundo do rio enquanto atravessa para o outro lado.
Esse ponto é muito importante para entender a capacidade que a China tem de incluir como membros do Partido trabalhadores rurais, operários industriais, pequenos burgueses e capitalistas bilionários, como vimos no recente congresso do partido realizado em Pequim.
Também a capacidade de fazer alianças até com seus inimigos de outrora, como americanos e japoneses. Acredito que esse pragmatismo e gradualismo seja parte integrante da sociedade chinesa. Partido e sociedade se olham sob o mesmo prisma, baseados no pragmatismo e no gradualismo e por isso a China tem conseguido evoluir, pese as imensas contradições que abriga em seu seio. Manter as contradições como não antagônicas e transformar as antagônicas, internas ou externas, em não antagônicas é o grande mantra, não só do partido como da sociedade chinesa.
A sociedade chinesa hoje apresenta várias contradições importantes entre as diversas forças que apoiam o partido. O crescimento das desigualdades sociais e suas contradições tem sido minimizado pela melhoria de vida da maioria da população, mas continuam lá, e o partido percebe isso, pois, no novo Plano Qüinqüenal, a preocupação com a interiorização do desenvolvimento e da melhoria de vida da população rural é muito presente. Também a melhoria de vida da população urbana com o redirecionamento do setor de construção civil para produção de mais habitações populares procura focalizar esse problema.
Hoje, talvez uma centena de milhão de chineses vivem nas cidades em condições precárias ou em alojamentos, longe das suas famílias em razão dessas deficiências. Essa contradição tem potencial explosivo, principalmente por se materializar nos grandes centros urbanos e nas zonas industriais. Não se pode esquecer que a revolução socialista na China foi feita a partir do campo, e os trabalhadores rurais foram a grande base de apoio do partido durante o período revolucionário, na luta contra o Kuomitang (nacionalistas) e também contra os invasores japoneses. Na sociedade chinesa de hoje, aqueles que sustentaram o fervor revolucionário e que mais apoiaram o partido e a sua causa são os menos beneficiados pelo avanço econômico do país.
Da mesma forma, esse campo é o grande supridor de mão de obra barata e alimentos para sustentar o processo de urbanização, industrialização e acumulação de capital. Uma tremenda contradição, não é mesmo?
Mas, de todas as contradições existentes na China, acredito que a maior delas e a mais fundamental é aquela interna ao próprio sistema ditado pelo pragmatismo e gradualismo do partido. Ao abraçar cada vez mais a economia de mercado e a forma de acumulação capitalista, não estaria a China se transformando ela própria num país capitalista? Se assim é e assim parece, seria isso compatível com um sistema de partido único cuja legitimidade é dada unicamente pelos seus resultados? Não estaria essa tentativa incessante de se legitimar pelos resultados ao invés do voto levando cada vez mais a China na direção à forma de acumulação capitalista?
A resposta a essa pergunta caberá à história responder, mas certamente está no centro das discussões atuais dentro do partido. Movido pelo pragmatismo e pelo gradualismo reformador, o partido tem conseguido atingir as metas das quatro modernizações pensadas por Zhou Enlai em 1963 e retomadas por Deng Xiaoping em 1978. Mas essas quatro modernizações (agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa nacional) tiveram de esperar 15 anos e uma Revolução Cultural que deixou marcas indeléveis na China até serem implantadas.
À medida que as modernizações avançam e transformam a China num país líder em termos econômicos e de progresso de sua sociedade, a questão da quinta modernização, que seria a do sistema político mais participativo e, quiçá, representativo é a maior contradição da sociedade chinesa atual.
O velho sonho comunista da ditadura do proletariado, da sociedade sem classes e do controle social dos meios de produção parece estar cada vez mais longe. O fracasso do modelo socialista puro onde foi implantado inspirou os líderes chineses acertadamente a abandonar o dogmatismo e o fervor revolucionário e a adotar o pragmatismo e o gradualismo. Essa decisão foi muito boa para a China e para o mundo.
Acredito que o partido continuará trilhando o caminho do pragmatismo e gradualismo, até porque isso tem dado certo. Chame isso de socialismo chinês ou qualquer outra coisa, o certo é que, sempre quando as lideranças chinesas têm de escolher entre o velho e o novo, não demonstram muita hesitação entre o que não deu certo e o que realmente funciona no mundo real. O mantra da legitimidade pelos resultados é muito presente nas lideranças chinesas.
Mas a contradição fundamental permanece!
O partido “comunista” chines é formado por pessoas esclarecidas, estudadas e preparadas.
Coloco comunista entre aspas porque já não existe mais o apego aos dogmas de Mao Tse Tung ou Karl Marx. Poderia se chamar Partido da China, Governo da China ou qualquer coisa assim. Para a população não mudaria nada.
O fato é que essas pessoas mais preparadas foram alçadas ao poder após a morte de Mao, e juntamente com ele, dos apegos ideológicos. A China hoje claramente é um país capitalista, de partido único. O que levou o partido a mudar a direção, acredito que tenha sido aquilo que o chines aprende desde criança: sobrevivencia. E para isso, o massacre da praça da paz celestial foi mais um empurrão. Ali o partido percebeu que deveria acelerar mais a mudança de direção iniciada após a morte de Mao.
O fato é que a população apóia o partido, porque este está apresentando resultados, para a maioria. Para a minoria, ficam as promessas. Como as promessas de crescimento foram cumpridas, por que duvidar dessas de agora? Eh o que se pergunta o chines do campo…
Num palpite para o futuro, acredito que o partido possa ate mesmo englobar mais pessoas da sociedade, para representar cada vez mais a China, num misto de democracia e ditadura. Mais uma contradicao. Mais uma estrategia de sobrevivencia.
Contradições mesmo que não antagônicas tem potencial de se transformarem em antagônicas. As forças sociais se organizam em torno dessas contradições conforme seus interesses. Aparentemente o recente evento que envolveu o camarada Bo Xilai é uma demonstração disso. A atuação do camarada explorava a contradição do atual sistema político e econômico chines em benefício próprio e tinha potencial de criar uma força “eleitoral” fora do partido mas para dentro dele. Obter força política através da opinião pública como pressão sobre o próprio partido foi demais.
Jose Carlos,
No caso do Bo eh um pouco complicado analisarmos. Eh um bastidor muito fechado. O que posso dizer eh que a populacao de Chongqing o ama. Ele organizou a cidade, acabou com a prostituicao e a corrupcao policial. Claro que fazendo isso trouxe certo prejuizo a “setores da sociedade”
Ótima reportagem. A China é um complexo cultural. Não se pode julgar, como bem escreveu a reportagem, uma cultura de tão grande diversidade. De fato, os motivos da subsistência de um sistema ditador, independe da cultura de um povo, mas de líderes que impõem suas ideologias. Suas estratégias, vivem enquanto seu povo está despreparado, quanto ao conhecimento. Talvez, com a abertura do país para o conhecimento em geral, como fazem com a indústria, haja uma mudança harmoniosa para todos…não só na China, mas em todos países que tratam seu povo como massa de manobra.
Caro senhor,a dialética é uma ferramenta muito valiosa para análise da realidade.Finalmente li,em um jornal da chamada grande imprensa, um texto que realmente pude aproveitar no sentido de compreender melhor o mundo em que estamos vivendo.Espero que o senhor continue a nos proporcionar novos trabalhos.Obrigado.
Caro Martins,
Uma pena que o governo brasileiro por exemplo prefira seguir o exemplo falido de Cuba ou da ex-URSS e nao o exemplo da China de “pragmatismo e resultados” como vc menciona no artigo. Certamente não entendemos a revoluçao urbanizacional e educacional que ocorre por là e preferimos criar barreiras protecionistas paliativas e não atacamos as verdadeiras causas da nossa baixa competitividade: falta de coragem para se realizar as reformas estruturais, pessima qualidade do ensino e estado extramente inchado, caro e ineficiente. Diferente dos chineses, nós preferimos insitir no “velho e no que não deu certo no mundo”. No caso brasileiro nem Édipo teria sucesso pois a nossa esfinge nao tem cabeça. Belo artigo!