Ventos da Birmânia
23/04/12 10:12Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai
É quase impossível viver no Leste Asiático e não acompanhar o que está ocorrendo em Mianmar (ex-Birmânia). Por isso volto ao tema, tratado recentemente neste blog num artigo de Eric Vanden Bussche. Mianmar impressiona por vários fatores: a beleza e o inusitado de suas paisagens físicas e humanas, a cultura budista, que permeia tudo, inclusive as discussões políticas, o fechamento e o atraso. Com uma área territorial do tamanho da França, o país foi a maior economia do Sudeste Asiático até os anos 60. A partir daí, com a ascensão dos militares ao poder, fechou-se para o mundo, econômica e politicamente. Passou a viver uma aventura inexplicável, sobretudo se levarmos em conta que os vizinhos se abriram, cresceram e prosperaram pela via da exportação e da atração de investimentos.
Quem em algum momento leu os relatos sobre a líder da oposição Aung San Suu Kyi, não
pode ficar alheio aos fatos recentes. Suu Kyi, aos 43 anos, deixou o marido e os
dois filhos na Inglaterra e voltou ao seu país para lutar pela democracia e proteção dos
direitos humanos. Filha de um dos próceres da independência, assassinado quando ela
tinha apenas dois anos, rapidamente tornou-se a maior líder de oposição. Seis meses
depois do seu regresso, quando convocou uma grande marcha em tributo aos que
haviam desaparecido e como denúncia de que os militares nunca deixariam o poder, foi
posta em prisão domiciliar.
Solta por curtíssimos períodos, ficou praticamente 20 anos detida dentro de casa. Em silêncio, foi uma das vozes mais contundentes pela liberdade no mundo. A vitória de seu partido, o NLD, em modestos 43 assentos no Congresso, não altera de imediato o panorama decisório no Mianmar. Mas é uma mudança extraordinária em relação ao passado. Tanto por parte do governo do presidente Thein Sein, ao abrir algum espaço para a oposição, quanto na posição da própria Suu Kyi, que terá agora de firmar compromissos com ideias muito diferentes das suas.
Há alguns anos, ouvi de um amigo birmanês que um país tão arraigadamente religioso
como o Mianmar nunca poderia se tornar uma democracia. Segundo ele, a democracia
exige um ambiente em que a tônica é o embate. Isso, disse-me, é incompatível
com o budismo. Na história recente do Mianmar, confrontaram-se duas leituras de
comportamento político: o isolamento de Suu Kyi e, com ele, a idéia de que apenas
os líderes que buscam um senso de espiritualidade estão preparados para governar, e
a junta militar, na concepção de que o budismo não aceita personalismos, mesmo na
condução dos temas do Estado.
Meu amigo birmanês, vejo agora, estava equivocado. No momento em que conversamos, ele fazia todo esforço possível para sair do país. Conseguiu. Está de volta. Não fugiu à regra geral. Eles quase sempre regressam. Shway Yoe, pseudônimo de J.G. Scott, britânico que residiu na Birmânia no final do século 19 e se tornou o mais importante comentarista da vida local, escreveu certa vez que o maior presente que um birmanês podia dar a um inglês era desejar-lhe que, em recompensa por suas boas ações, renascesse budista e, de preferência, na Birmânia.
A Carta da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), da qual Mianmar é signatário, estabelece no Artigo 1 que um dos propósitos da organização é fortalecer a democracia, melhorar a boa governança e a regra da lei, promover e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais. É um propósito, no mínimo, corajoso para uma associação que tem entre seus membros, além do próprio Mianmar, uma monarquia absolutista (Brunei Darussalam) e países dominados pelo mesmo partido desde a independência, há mais de 50 anos.
Em Mianmar, o Estado fechado e repressor sempre foi visto como menos democrático do que outros na região, sobretudo por deixar a população afundar-se na pobreza. Os governos em diversos países do Leste Asiático legitimam-se não pelo voto, mas pela promoção do bem estar. Enquanto, nos últimos 50 anos, Cingapura passou de uma renda per capita de país pobre a US$ 50 mil, Mianmar ficou em US$ 800.
O país tem óleo e gás, assim como recursos minerais (cobre, zinco, chumbo, pedras,
urânio), todos produtos cujos preços estiveram nas alturas nos últimos anos. Mas não
aproveitou. Sem recursos, isolado por decisão deliberada dos governantes e pelas
sanções internacionais, atraiu investimentos reduzidos, sobretudo chineses, mas também
de Hong Kong, Tailândia, Coreia do Sul e Índia. Hoje, cresce a taxas elevadas (9, 7% em 2011), mas a base econômica é precária. Falta muito.
Os bancos internacionais já começaram a preparar relatórios sobre a realidade mianmarense, o Fundo Monetário está mais presente, os Governos estão se aproximando, como fez, na semana passada, David Cameron, numa visita que teve bom destaque na mídia internacional. Oportunidades não faltarão.
Mas o quadro político ainda tem de avançar muito.
Vivendo num país que enfrenta anualmente o período de monções, o birmanês contrariando o senso comum, costuma dizer que é no teto, e não na base, que está o risco da casa. Quando chove muito, o teto vaza e põe a construção em perigo. Em outras palavras, as mudanças políticas terão de continuar a vir de cima.
Transformar Mianmar, contudo, é tarefa muito complexa. Quando as sanções forem suspensas, passo que depende essencialmente da visão expressa por Suu Kyi, os investidores externos virão vorazes. Mas um país fechado há cinco décadas tornou-se ensimesmado. O cidadão do Mianmar, budista, supersticioso, voltado apenas para a sua realidade, não absorverá rapidamente os câmbios. Perderá o medo de se expressar, o que, por si só, é um oceano de diferença positiva, mas terá de ajustar a sua cabeça a um novo mundo. Tudo terá de ser feito dentro de uma ordem que ainda não é visível. Mudanças apressadas podem ser danosas. Mas Mianmar também precisa correr contra o tempo. É aí que o diálogo entre o governo e os seus críticos poderá ser mais benéfico.
* Este artigo é uma versão revisitada e resumida de um artigo que escrevi há cinco anos
sobre Mianmar.
Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.
Olá! Gostei do seu post sobre Myanmar! Moro no Camboja e vou viajar pra lá agora em maio! Aqui no Camboja andou correndo boatos que quando Myanmar se abrisse a corrente de investimentos que têm vindo pra cá talvez fosse pra lá. Não sei se isso realmente poderia acontecer, até porque a abertura do país ainda é muito mais teórica do que prática. Estamos indo pra lá pagando fábulas por coisas simples e a exclusão do país é notória. Reservar um hotel via internet não é tarefa fácil e já fui avisado de que não haverão ATMs nem máquinas de cartao de credito. Parabéns!
Ah, tenho um blog chamado Holiday in Cambodia e por enquanto cobri viagens no Camboja, Malásia, Tailândia, Vietnã, Cingapura, Indonésia e muito em breve Myanmar e China. Se quiser dar uma olhada o link é esse: hldyncambodia.blogspot.com
Grande abraço! ;]
Caro João,
obrigado pelo seu comentário. Meu conhecimento da Coreia do Norte é muito reduzido. Confesso que, por ter vivido no Sudeste Asiático durante quatro anos antes de mudar-me para a China, concentrei-me na comparação de Mianmar com outros países da região. O senhor contudo nota, com propriedade, que no Nordeste asiático há um país bem mais fechado e com maior impacto no mundo internacional pelo seu poderio militar. Comprometo-me a, quando puder, coletar impressões relevantes sobre a Coreia do Norte e narrá-las no blog, sem análises mais profundas.
Prezado Marcos Caramuru de Paiva,
Interessante sua análise política em Mianmar,
poderia também analisar a Coréia do Norte, tenho especial interesse em saber como a população chinesa interpreta a situação no seu vizinho. A imprensa brasileira interpreta a Coreia do Norte como uma ditadura do mal, por outro lado o site de notícias chinês Xinhua refere-se ao país como Democratic People’s Republic of Korea. Na minha humilde opinião, a situação da Coreia do Norte só começará a mudar quando as tropas americanas saírem da Coréia do Sul, estou enganado ?
Caro Marcos Caramuru, aprendo sempre
com seus textos. Aliás, faço-o desde o inicio dos anos 90. Sua longa passagem pelo oriente – que me fascina – traz até SPaulo, através do texto fluente (influencia de sua vivencia com jornalistas?) informações deste vasto territorio onde temos tanto a aprender.
Depois de Mianmar, aguardarei analises de outros paises, povos, costumes, religiões, para que venham suprir meu desconhecimento deste “misterioso” oriente de minha juventude.
Cumprimenta-o Morelli.
Traduzir rule-of-law por regra da lei não é adequado, em que pese as “recomendações” dos famigerados manuais de redação. Império da Lei ainda seria aceitável, mas manter o termo em inglês, no original, facilitaria muito a leitura.
Caro Senhor Marcos, muito timidamente, e apenas com a experiência de um psiquiatra curioso que ouve história de gente o dia todo, gostaria de tecer algum comentário…
“Com uma área territorial do tamanho da França, o país foi a maior economia do Sudeste Asiático até os anos 60. A partir daí, com a ascensão dos militares ao poder, fechou-se para o mundo, econômica e politicamente.”
Não seria o problema a ditadura militar? Afinal eles eram budistas na década de 60. Conheço alguns budistas, todos democráticos e combativos (embora não-violentos). Nunca residi em qualquer país budista, mas parece que no Japão e na Coréia do Sul a influência da religião budista na cultura é importante. São países democráticos e prósperos.
A Malásia, se não me engano, é um país que observa as leis muçulmanas, também atrasado e supersticioso em seus costumes (desde o presunçoso ponto de vista ocidental), mas rico e próspero. Talvez o problema não seja a superstição.
Qualquer povo oprimido de forma violenta (temporariamente) se cala. O povo norte-coreano passa fome enquanto seu governo lança satélites (ou seriam mísseis?). Parece que na China o povo também não tem muita oportunidade para se expressar. Talvez a diferença entre a China, Coréia do Norte e Mianmar esteja mesmo na qualidade do “teto”; talvez os governantes chineses tenham sido mais inteligentes e previdentes na forma de conduzir o processo econômico em seu país, o que inclusive lhes tem garantido maior longevidade no poder.
Transforma Mianmar será complexo, mas provavelmente eles somente poderão partir do ponto em que se encontram. Acredito que os valores budistas poderão contribuir positivamente para o progresso tangível deles. Até onde posso perceber, o budismo cultiva um espírito pacífico, mas não passivo! Veja por exemplo os textos sobre Shambhala (e Kalachakra).
Obrigado pelo seu interesse no texto e por suas observaçōes. De fato, o meu texto permite a sua interpretação. Por isso lhe escrevo. Não creio que o budismo tenha sido responsável pelo atraso em Mianmar. Como o senhor, acho que o quadro político levou a isso. Tampouco acredito que o birmanés seja supersticioso por ser budista. A superstição reflete uma origem cultural e a baixa escolaridade. Mas na Ãsia observo frequentemente que preceitos religiosos são frequentemente utilizados para coibir ou justificar práticas que nada têm a ver com os ensinamentos religiosos. Não acredito que países em que a religião e o Estado se confundem estejam destinados ao atraso. Em países muçulmanos frequentemente a religião ajuda a criar uma rede de proteção social que contribui para o bem estar geral A Malásia, citada em sua mensagem, é um bom exemplo disso. Eu julgo que o que muda realidades – para o bem e para o mal – é a qualidade das lideranças.
Mianmar é o novo destino dos turistas aventureiros, pena que não aceitem turistas jornalistas. Recomendo dois filmes — “Burma VJ”, documentário indicado ao Oscar sobre os protestos de 2007, e o novo “The Lady”, sobre Suu Kyi.
Considerando que um fator preponderante para a abertura política em Myanmar foi justamente as manifestações políticas de oposição capitaneadas de monges budistas, parece ser, no mínimo, injusta a pecha de que o budismo seja antidemocrático. Na verdade, o respeito às diferenças e o incentivo à liberdade são dois pilares do budismo, como se pode ver no famoso discurso do Buddha, denominado Kalama Sutta. A manipulação da religião pelos militares birmaneses não pode ser confundida com a religião em si.