A geração dos filhos únicos: mais ambição, menos oportunidade
07/05/12 08:02Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai
Nascer num período histórico favorável é um golpe de sorte. Na China, dada a dimensão das transformações políticas e sociais dos últimos anos, isso parece ser mais evidente do que em outros lugares.
Quem, originário de uma grande cidade, chegou à idade de trabalho na época da Revolução Cultural, perdeu 30 anos sem poder explorar o seu potencial. A revolução durou uma década (1966-76). Mas, como as reformas iniciadas no final dos anos 70 só impactaram o país como um todo 20 anos depois, foi-se a vida profissional, num momento histórico conturbado e desfavorável.
Quem, ao contrário, chegou à idade de trabalho quando a China começou a colher os resultados da abertura, surfou numa onda extraordinariamente positiva. Os egressos da universidade _naquela época o acesso ao ensino superior era bem mais limitado do que hoje_ tiveram uma oportunidade excepcional na história. Muitos iniciaram os seus próprios negócios e enriqueceram rapidamente. Agora, com idades entre 35 e 50 e poucos anos, gozam uma vida profissional bem-sucedida do ponto de vista financeiro, têm tempo suficiente para viajar e aproveitar a vida. Desse grupo vêm majoritariamente os compradores das Ferraris e Rolls-Royces que circulam nas ruas e os clientes das lojas de luxo que se acumulam nos shoppings sofisticados. Mas, nas grandes cidades, há muita gente sem consumo glamoroso, com elevadíssimo grau de conforto na gestão do seu dia-a-dia.
O problema é que não é mais tão fácil ganhar dinheiro. A geração que nasceu do final dos anos 80 em diante não terá, nem de longe, o ambiente econômico vantajoso da geração que a precedeu. Um número maior de jovens, é fato, consegue o diploma universitário, o que, na visão geral, dá-se em detrimento da qualidade do ensino. Mas a chance de enriquecer não está disponível como no passado. Pior: como esta geração é a primeira só de filhos únicos, as expectativas em torno dos jovens _próprias e das famílias_ são enormes. Há, nas grandes cidades, quem venha de famílias em que os pais amealharam bem e estão dispostos a dar o que têm aos filhos. Mas muitos outros, não.
Há meses, ouvi num programa de rádio um debate entre pais de adolescentes da classe média de Xangai. A reclamação era geral. Alguns diziam que as exigências dos filhos por apartamentos com calefação no piso, roupas “trendy” e outros modismos eram incompatíveis com o nível de renda das famílias que não tiveram muito êxito nos anos dourados da transformação. Os filhos olhavam os colegas de maior posse e queriam ter o seu grau de bem-estar. Muitas das reclamações vinham de pais que viveram o impacto da Revolução Cultural, quando todos eram iguais _ou parecidos_ na renda. A maioria deles residiu em moradias coletivas e estava extraordinariamente satisfeita em ter o seu apartamento próprio, educar o (a) filho (a) com conforto e ainda ajudar os mais velhos na família.
Mas os filhos não vêem as coisas dessa maneira. Tomam como certo que a qualidade geral de vida melhorou. Partem de um patamar considerado inimaginável no passado. Esperam um futuro brilhante e confortável. Acreditam que seus salários terão regularmente aumentos extraordinários. Como há emprego em abundância, estão sempre atrás de remuneração mais alta, com baixa fidelidade aos empregadores. A economia, contudo, não vai crescer para sempre a taxas elevadas do passado.
Nesse ambiente em que os jovens querem mais e melhor, conservam-se as tradições. Os casamentos ainda são muito valorizados. Em Xangai, é comum ver as noivas sendo fotografadas nas ruas da cidade, frequentemente com noivos bem menos entusiasmados, mas sempre dispostos a participar da brincadeira. Aqui, a prática é tirar fotos românticas nas ruas e exibi-las aos amigos no jantar de celebração das bodas. A assinatura dos papéis é feita apenas pelos noivos, sem qualquer cerimônia, às vezes meses antes do jantar.
A bem da verdade, as estatísticas revelam que, nos quatro primeiros meses de 2012, o número de casamentos em Xangai caiu 11,6% em relação ao mesmo período de 2011. Isso não significa, contudo, a menor atratividade da união, e sim o fato de que, nos últimos anos, o número elevado de casamentos refletiu o “baby boom” do início dos anos 80, quando tudo era esperança na China que se abria.
Encontrar parceiro é sempre uma prioridade. A China não é muito diferente dos demais lugares. Só que aqui frequentemente mais pelo entusiasmo dos pais do que dos jovens. O maior evento anual de “matchmaking” da cidade neste ano teve de ser antecipado em seis meses, em razão da demanda das famílias. Na China inteira, o programa de televisão de maior audiência chama-se “fei cheng wu rao” (“se não for honesto não me incomode”, em tradução livre). Em 2011, a renda dos patrocinadores foi 500 milhões de yuan (R$ 153,3 milhões). Em 2012, a renda já garantida é de 2 bilhões de yuan (R$ 613,3 milhões), tal o sucesso.
Em contraste com a preservação das tradições, há um número crescente de casais na onda do “double income no kids” (dupla renda, nenhum filho). Em Xangai, se dois filhos únicos se casam, podem ter dois filhos Mas, em 2009, a Universidade Fudan fez uma pesquisa em que registrou que 12,4% dos casais na cidade não planejam nem mesmo um. Ao divulgar a pesquisa, a universidade indicou que, em casais entre 20 e 40 anos, essa percentagem é maior.
Diz-se em Xangai que, quem nasceu nos anos 70 pôde, com um mês de trabalho, comprar um metro quadrado de apartamento. E, para quem nasceu a partir da segunda metade dos anos 90, a meta de ter um apartamento ficou quase inatingível. Os preços foram à Lua nos últimos anos e, ainda que estejam caindo um pouco agora, nunca mais existirão as oportunidades do passado.
Em 2011, o preço médio de um imóvel na cidade, excluída a moradia subsidiada pelo governo, foi de 2,58 milhões de yuan (R$ 790 mil), enquanto o salário médio anual ficou em RM 51,9 mil (R$ 16 mil). Ou seja, sem contar os juros, seriam necessários cerca de 50 anos para que um salário médio inteiro pagasse o principal da compra de um imóvel. Se considerarmos que cerca de 30% do salário seja alocado ao pagamento da moradia, estamos falando em 165 anos.
Em suma, não será muito fácil convencer uma geração inteira de que é preciso baixar as expectativas. Mas é inevitável fazê-lo. Sempre existirão ganhadores, é claro, mas o número será bem menor do que há 10 ou 20 anos, e o esforço empregado por eles terá de ser consideravelmente maior.
Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.
Excelente visão da China, o que valoriza ainda mais o Brasil, apesar de todas as nuances da nossa cultura.
Excelente texto sobre tema com implicações políticas muito importantes.
Por aqui acontece algo muito semelhante. Percebo isso quando vejo a mentalidade de meus familiares mais novos. Os jovens que hoje estão na casa dos 18 aos 25 anos não querem pouca coisa não, são muito ambiciosos. Isso pode ser bom se realmente conseguirem o que querem, mais o tombo e a frustração também podem ser maiores.
O que mais me chamou a atenção foi o dado acerca do salário médio em 16 mil reais. No Brasil, acho que é 20% acima, mas pensava que a diferença era bem maior, visto o preço baixo das manufaturas chinesas. Fica claro, então, que esse baixo custo chinês é mais justificável em função do câmbio… Mas, por outro lado, como esse câmbio impacta nos preços dos produtos que os chineses importam?
Caro Alexandre,
O artigo fala do salário médio em Xangai, que é mais alto do que a média de salários nas cidades que produzem bens de baixo valor agregado. A competitividade dos produtos chineses tem a ver com vários fatores: recursos para financiar a produção, custo dos emprêstimos, facilidade de infraestrutura e salários. Mas os salários estão aumentando no país inteiro. Além disso, desde a lei de contrato de trabalho de 2008, os empregadores são obrigados a assinar contratos trabalhistas e a pagar as contribuições previdenciárias, que estão na faixa de 44 por cento dos salários brutos. O cãmbio ainda é um fator a aumentar a competitividade dos produtos chineses. Mas ele deverá apreciar, entre outras razóes, para aliviar o custo da importação de alimentos.
Qualquer semelhança com o que o Brasil está vivendo ou irá viver muito em breve é mera coincidência, não é mesmo?