Procurado pela polícia chinesa
11/05/12 09:39Por Eric Vanden Bussche, em Nanjing (leste da China)
A recente decisão do governo chinês de expulsar do país a correspondente da Al Jazeera em Pequim, Melissa Chan, trouxe de volta à memória um episódio que vivenciei em abril de 2004. Enquanto realizava uma reportagem sobre a degradação ambiental no sudoeste da China, por pouco não fui detido por dois agentes da polícia chinesa que estavam à minha procura.
Na época, trabalhava como jornalista para o Nanfang Daily News Group, cujas publicações atraíam o interesse de leitores de todo o país por reportagens que testavam os limites da censura: a epidemia de Aids, o abuso de poder por governo locais e vários outros temas que fazem parte do dia-a-dia dos chineses, mas que são ignorados pela imprensa oficial. Ironicamente, o Nanfang Daily News Group pertence ao Partido Comunista da Província de Guangdong. Entretanto os líderes locais e os agentes do Departamento de Propaganda demonstravam certa tolerância com a audácia dos jornalistas em nome dos lucros proporcionados pelo enorme sucesso de vendas.
Os editores e repórteres também desenvolveram métodos para burlar a censura. Eles pareciam seguir ao pé da letra a orientação do líder chinês Deng Xiaoping: “Atravessar o rio, sentindo as pedras” (Mozhe shitou guo he). Essa expressão havia sido cunhada por Deng em 1984 para frisar que as políticas de abertura econômica não seguiam um modelo predeterminado, mas seriam avaliadas e ajustadas a cada passo dependendo dos resultados. No final dos anos 90, os repórteres incorporavam esse modus operandi à cobertura jornalística.
Fui contratado como “especialista estrangeiro” pelo Nanfang Daily News Group em 2001, quando estava terminando a minha pós-graduação na Universidade de Pequim. Minha função consistia em escrever matérias sobre cultura e esportes, ou seja, “soft news”. Pelo fato de ser estrangeiro, eu não tinha a autorização para participar de reportagens que pudessem gerar controvérsias. Nada de política ou qualquer outro tema que pudesse enfurecer alguém no Departamento de Propaganda. E, mesmo assim, os meus editores adotavam uma autocensura mais rígida com as minhas reportagens por ser estrangeiro. Embora escrever sobre cultura e esportes não me entusiasmava muito, aceitei o desafio para vivenciar a China fora da academia e conviver com jornalistas extremamente respeitados no país.
Havia outra vantagem. Eu podia escrever matérias como free-lancer para a imprensa estrangeira. O governo chinês não permite a atuação de free-lancers no país. Mas, como muitas das leis na China, na época ela existia apenas no papel. Meus editores, entretanto, me advertiam para atuar com discrição e não me envolver em confusões. Um deles certa vez me disse: “Não quero ter de tirar você da prisão”.
Eu também tive a sorte de atuar num ambiente um pouco mais aberto e tolerante com a liberdade de expressão. Por um breve período no final dos anos 90 e início da década passada, o governo relaxou um pouco o seu controle sobre a imprensa chinesa. Foi durante esse período que as publicações do Nanfang Daily News Group produziram suas melhores reportagens.
Com o aval dos meus editores, em fevereiro de 2004 segui para a municipalidade de Xuyong, uma área montanhosa habitada por uma diversidade de minorias étnicas na Província de Sichuan, sudoeste da China.
A escolha de Xuyong não ocorreu por acaso. Eu já havia visitado a região em outras duas ocasiões com amigos chineses e tinha desenvolvido uma rede de amizades que facilitaria o meu trabalho de obtenção de informações e realização de entrevistas. Conhecia também bem a chefe do Partido Comunista local. É ela quem salvaria a minha pele quando dois policiais do Escritório de Segurança Pública de Sichuan apareceram sem aviso prévio na cidade em abril para me prender e me levar a Chengdu, capital da Província, onde seria interrogado sobre as minhas atividades em Luopu, que ficava a alguns quilômetros do centro urbano de Xuyong.
Luopu era uma vila industrial que até o final dos anos 90 tinha uma reputação semelhante à de Cubatão, na Serra do Mar paulista. Conhecida como a capital da poluição da China, a vila se destacava por suas montanhas cinzentas, rios com peixes mortos e uma população enferma. O vilão era uma fábrica de celulose que, embora permitisse a sobrevivência econômica da região, tinha massacrado o meio ambiente e causada altas taxas de mortalidade por espalhar câncer entre a população. No final dos anos 90, o governo da Província resolveu fechar a fábrica de celulose, deixando a maioria dos habitantes da vila desempregada e com sérios problemas de saúde. Isso gerou protestos, reprimidos pela polícia local.
Com a ajuda de um médico que trabalhava num hospital de Luopu e morava no centro urbano de Xuyong, visitei a vila no início de abril de 2004. Minha visita chegou aos ouvidos do chefe de polícia local, que entrou em contato o Escritório de Segurança Pública da Província para informar que um estrangeiro estava visitando a região e fazendo perguntas sobre os problemas de poluição e os protestos. O Escritório resolveu, então, enviar dois policiais à minha procura.
No dia em que os policiais chegaram a Xuyong (que fica a um dia de viagem de Chengdu), a sorte esteve ao meu lado. Eles não conseguiram me encontrar, pois estava no hospital da cidade. Eu tinha ido explorar uma caverna em Luopu com um amigo chinês e acidentalmente bati a cabeça numa rocha. Precisei levar seis pontos. Enquanto os agentes da polícia rondavam Luopu e o centro urbano de Xuyong à minha procura, estava sendo atendido no hospital.
Os agentes resolveram, então, perguntar a chefe do Partido Comunista local se conhecia o meu paradeiro. Ao ouvir que o Escritório de Segurança Pública da Província considerava a minha presença na região “perigosa” e “uma ameaça para a estabilidade,” a chefe riu e respondeu que eles não precisavam se preocupar: “Ele é um de nós” (Ta shi ziji ren). Ela disse que se responsabilizaria por mim e mandou os policiais de volta para Chengdu.
No dia seguinte, presenciei algo mais estranho. Recebi a informação de que a prefeita de Luopu aceitaria me receber para uma entrevista. Ela queria me mostrar os esforços de seu governo em recuperar o meio ambiente e transformar Luopu numa região turístico. De um dia para o outro, a prefeita se convenceu que uma reportagem sobre a vila em um jornal estrangeiro poderia atrair investimentos e turistas à região. Só havia uma condição: eu não poderia fazer nenhuma pergunta sobre os protestos que ocorreram na vila.
Achei cômica a reviravolta dos acontecimentos. Eu havia sido taxado pela polícia como um “perigo” e, menos de 24 horas depois, recebido um convite da prefeita para uma entrevista. “Você passou de inimigo número um do povo para herói da vila,” brincou um dos meus amigos. “Agora você sabe o que é ser chinês.”
No dia da entrevista, a prefeita foi extremamente atenciosa comigo. Eu até consegui todas as informações que queria sobre os protestos na vila sem fazer uma só pergunta a este respeito! Isso ocorreu graças a um descuido da prefeita. No final da entrevista, enquanto saboreávamos chá, a prefeita virou para um de seus assistentes e começou a falar sobre os protestos no dialeto do sul de Sichuan. Ela pensava que eu só entendia o mandarim e não tinha conhecimento do dialeto local. Mero engano, consegui entender a maioria do que estava dizendo. Foi o suficiente para esclarecer as minhas dúvidas sobre o assunto.
Esse incidente me permitiu a compreender com maior clareza o ambiente extremamente volátil no qual a imprensa chinesa sobrevive (aqui estou me referindo aos jornalistas comprometidos com a profissão e não àqueles que utilizam práticas que descrevi num artigo anterior). Até hoje me sinto extremamente agradecido à chefe do Partido Comunista local por ter me defendido. Se tivesse sido detido pela polícia, eu provavelmente teria me deparado com uma série de problemas. Talvez não tivesse sido expulso do país, mas os meus editores no Nanfang Daily News Group certamente teriam enormes dores de cabeça para resolver a minha situação.
Excelente, excelente!!!
Cada pais tem sua leis, quando alguem, as infringe, deve ser aplicado as penas correspondentes ! Mesmo quando ele discorda !
Aqui no brasil nao eh diferente !
(e olha que temos cada lei absurda ! )
Eric,
muito bom “Procurado pela Polícia”
na China
TVs, Rádios e Jornais são todos do governo ?
Abs.