China: paranoia ou mistificação?
24/05/12 11:28Fabiano Maisonnave, de Pequim
A edição desta quarta-feira (23) da Folha traz dois artigos sobre o “capitalismo oriental”. Apesar de um ser favorável e o outro, crítico, ambos revelam a pobreza do debate no Brasil sobre o papel da China no novo cenário mundial.
Os problemas mais óbvios estão no texto “As ameaças que vêm da Ásia” (aqui, para assinantes), do sociólogo da Unicamp Ricardo Antunes. Trata-se de uma compilação de clichês congelados no tempo, como o de que a China atual levou “a superexploração da classe trabalhadora ao limite”.
Usando a Foxconn como exemplo, Antunes, no melhor estilo vandreano (“pelos campos há fome em grandes plantações”), afirma que os operários da empresa em Shenzhen (sul da China, ao lado de Hong Kong) “produzem aparelhos aos milhões e, em geral, nem imaginam como funciona a mercadoria produzida, levando o fetichismo maquínico à forma mais fantasmagórica”.
Não é bem assim. Ocorre que a repisada crítica sobre os baixos salários na China está cada vez mais desatualizada, ou pelo menos matizada, depois de sucessivos aumentos reais nos últimos anos, uma tendência nacional. Em Shenzhen, o salário mínimo subiu 15,9% no início do ano, mais de duas vezes acima da inflação. Agora é de 1.500 yuan (US$ 237), significativamente acima do valor citado por Antunes (900 yuan). Shenzhen, aliás, tem o maior salário mínimo da China e já o havia aumentado em 20% no ano passado.
É pouco, claro, mas não tanto, já que a China é um país com custo de vida relativamente barato. Numa breve comparação com o Brasil: o salário mínimo tupiniquim é R$ 622 (US$ 305), e o modelo mais barato do iPhone, produzido pela Foxconn, custa R$ 1.999 (US$ 975). Ou seja, é preciso 3,2 meses de salários para comprar um.
Na China, o iPhone básico sai por 4.988 yuan (US$ 788), ou seja, 3,3 meses de salário em Shenzhen. A diferença é mínima (o custo da ligação na China é muito menor, mas isso é outra história).
A poucos metros de um dos portões principais da Foxconn, há uma grande loja autorizada da Apple. O iPhone, claro, tem um preço proibitivo para a maioria dos funcionários. Mas vários com quem conversei usavam um confiável HTC, espécie de genérico da Apple, com tela sensível e outras funções bem parecidas.
Obviamente, há salários baixos em regiões mais pobres, e as condições de trabalho são muitas vezes degradantes, incluindo a Foxconn (reportagem mnha aqui, para assinantes). Mas isso está mudando, tanto que muitas fábricas de mão de obra barata estão deixando a China rumo a Vietnã, Bangladesh e outros lugares. Reforçar apenas a crítica da “superexploração” é uma enorme simplificação, ainda mais quando se trata de um universo de cerca de 750 milhões de trabalhadores.
Antunes dá a impressão de que nunca pisou em Shenzhen ao chamá-la equivocadamente de Província, embora se trate de uma importante e moderna cidade de 13 milhões, mundialmente famosa por ter sido o berço das reformas econômicas iniciadas por Deng Xiaoping. Mal comparando, é como dizer que Manaus é um Estado.
Já o outro artigo, “Aprendendo com os asiáticos” (aqui, para assinantes), do reitor da UFMG, Célio Diniz, e do coordenador da Capes Geraldo Nunes, acerta ao dizer que a Ásia precisa de uma abordagem “objetiva e urgente” por parte do Brasil.
Mas, novamente, há uma redução da realidade. Não dá para falar de um “sistema acadêmico universitário de excelência” submetido a um regime autoritário. Basta lembrar que o Prêmio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, único vencedor desse prêmio encarcerado em todo o mundo, é um professor de literatura universitário e cumpre pena de 11 anos por suas ideias.
Nem mesmo a elite do Partido Comunista vê suas universidades com olhos tão bons e envia seus filhos ao exterior logo na graduação. É o caso da filha de Xi Jinping, que neste ano deve ser confirmado como a liderança máxima do país. Ela está em Harvard (EUA). Até o filho de Bo Xilai, o conservador líder neomaoísta recém-expurgado, foi para o Reino Unido ainda no ensino médio e nunca mais voltou.
O artigo menciona ainda que a Capes (com muito, mas muito atraso) negocia a implantação do programa “Ciência sem Fronteiras”, para trazer pós-graduandos em bolsas-sanduíche, como já existem para a Europa e para os EUA.
Acho um erro conceitual. O formato da bolsa não permite um período de aprendizado do mandarim, que leva pelo menos dois anos. Com isso, o brasileiros que eventualmente quiserem vir à China estarão limitados aos programas em inglês e interagirão principalmente com outros estrangeiros. Ou seja, estudarão na China, mas não necessariamente estudarão a China. Pela distância geográfica e cultural, é preciso um programa à parte e com mais recursos, que o gesso burocrático brasileiro dificilmente permitirá.
Outro equívoco é a aposta das universidades brasileiras em atrair os controvertidos Institutos Confúcios, financiados pelo governo chinês para o ensino da língua e da cultura chinesa. A UFMG, do reitor Diniz, é uma delas (está ainda em negociação).
O dinheiro é tentador, mas se trata de uma tentativa de Pequim de aumentar seu “soft power”, cujos objetivos propagandísticos são conflitantes com o mundo universitário. Dentro, são vários temas vetados. Não espere discutir ali os escritos de Liu Xiaobo.
Não se trata de proibir os institutos, pelo contrário. Sou partidário de que sejam tratados como centros culturais, assim como os de outros países _Aliança Francesa, Goethe, Cervantes_, mas não agraciados com status universitário.
Em alguns países, institutos mais antigos aos poucos tentam se converter numa espécie de centros de estudos chineses, gerando atritos, pois é uma iniciativa que claramente não tem os mesmo princípios de universidades de países democráticos. No caso brasileiro, há o agravante de que o país não tem (nem terá a médio prazo) um corpo docente capacitado sobre a China e a Ásia. E em terra de cego…
Aí voltamos ao primeiro artigo: é esse ambiente de indigência que estimula Antunes e outros tantos a escrever sobre a China sem nunca tê-la pesquisado com profundidade. Nos EUA ou no Reino Unido, nenhum professor universitário teria coragem de assinar um texto sobre relações trabalhistas chinesas sem um mínimo de especialização.
É preciso vir à China e investir tempo aqui para estudá-la. Vista de perto, não é nem uma enorme fábrica devoradora de trabalhadores nem a nova superpotência a um passo de dominar o mundo.
Admiro desmistificações. Marcante foi aquela de Lobato que, em seu artigo “Paranóia ou Mistificação?” de 1917, desancou a arte moderna de Malfatti , de Picasso e Cia, sentenciando que não passava de “sintoma de períodos de decadência, como frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro”. Certíssimo Lobato. Picasso, a maior fraude do século XX, confirmaria 35 anos mais tarde a sentença que lhe passara o escritor brasileiro quando, em conversa que teve com o escritor italiano Giovanni Papini, confessou: “ninguém mais procura consolação na arte, esses ricaços por aí, vagabundos profissionais, o que querem hoje é excentricidade, sensação e escândalo, e eu os alimento com isso. Quanto menos me entendem mais me admiraram. Claro que sei que não sou um pintor no sentido de um Giotto, um Ticiano, um Rembrandt, um Goya e outros. Não passo de um palhaço público”. Eis aí a fraude devidamente desmistificada no seu nascedouro.
Ao ler “Paranóia ou Mistificação” senti-me atraído pelo texto deste blogueiro, que se põe a desancar “a pobreza, a indigência” de um certo Ricardo Antunes, acadêmico nefelibata que, “em clichês congelados no tempo” teve a “coragem”, senão mesmo a desfaçatez de deitar falação sobre as relações trabalhistas chinesas “ sem um mínimo de especialização” e “sem jamais ter posto os pés na China”.
Amante do contraditório fui ler o texto do Antunes. Lá o autor, em enxutos três parágrafos sobre a China, em meio a outros sobre o Japão e a Índia, Antunes cita o exemplo da empresa chinesa Foxconn, e denuncia as condições degradantes dos trabalhadores, sua superexploração e isolamento, obrigados a trabalhar 12 horas por dia pelo salário de 900 yuans, o que tem levado a uma onda de suicídios.
Ajeitei-me na cadeira e fui ler a “desmistificação”. Em extensos vinte arrastados parágrafos, o blogueiro fala, fala, e acaba confirmando que as condições dos trabalhadores da Foxconn SÃO REALMENTE DEGRADANTES. Tenta corrigir o suposto “clichê congelado no tempo” de Antunes, que cita salário de 900 yuans, dizendo que hoje já é de 1.500 yuans, mas OMITE a informação de Antunes de que 900 é SALÁRIO BÁSICO, que pode dobrar com horas extras. Silencia sobre as 12 horas de trabalho e a onda de suicídios, citados por Antunes. Para rebater o fetichismo do produto apontado por Antunes, o blogueiro cita sua experiência pessoal de ter visto “vários” funcionários da Foxconn comprando HTC. “Vários” !! Meu Deus do céu! Quem mora na China tem de dar-me dados estatísticos precisos sobre a porcentagem de trabalhadores que podem se dar a esse luxo e qual seu nível na empresa. E essas estatísticas ele não as produzirá, tornando-se irrelevante o fato de estar na China ou não.
Diz o blogueiro que “na China, o iPhone básico sai por 4.988 yuan (US$ 788), ou seja, 3,3 meses de salário em Shenzhen”. Sério! Isso me faz lembrar o socialite no Brasil que gastou com sua família o equivalente a um salário mínimo num restaurante de luxo em almoço regado a vinho importado e exclamou: “depois dizem que não se pode almoçar com o salário mínimo no Brasil”.
Estás certíssimo, Antunes, os trabalhadores chineses “produzem aparelhos aos milhões e, em geral, nem imaginam como funciona a mercadoria produzida, levando o fetichismo maquínico à forma mais fantasmagórica”.
Caro Mitridates, as condições de trabalho na Foxconn são mesmo ruins, como está na minha reportagem feita em Shenzhen no ano passado, cujo título é “Na China, iPad sai de complexo semimilitar”. Mas não se trata de ser anti ou pró-China, anti ou pró-Foxconn, e sim de dar a informação mais precisa possível de uma situação bastante dinâmica.
A informação de Antunes sobre o salário básico de 900 yuan está bastante errada. A empresa não poderia pagar esse valor em Shenzhen porque o salário mínimo é 1.500. Na fábrica de Shenzhen, o salário inicial é 1.800 yuan, exatamente o dobro do mencionado por Antunes. O dobro.
Não há dados estatísticos sobre a porcentagem de trabalhadores da Foxconn que têm iPhones. Mas posso lhe dizer que a China é o segundo mercado mundial de iPhones, atrás apenas dos EUA. E a tendência é de crescimento, em parte porque os salários estão subindo.
É muito difícil entender a China sem ter estado lá pelo menos umas três vezes e visitado suas cidades costeiras e seu interior.
Companheiro, gostei da idéia do artigo e da conclusão geral (uma crítica ao pensamento genérico sobre a China e aos clichês impostos sem o estudo de campo devido). Mas vejo que devia aprofundar mais sua análise a respeito do poder de compra do salário chinês. Usar como argumento que o salário aumentou a níveis reduzidos, ou então avaliar o poder de compra pelo preço do iphone não me convenceu. Como você mesmo disse, o trabalho precisa ser matizado, de forma que eu esperava que você desse essas matizes. Por outro lado, também achei fraco o argumento de que o ensino chinês é fraco, e como exemplo citaste o envio de jovens às universidades estrangeiras. Isso é bastante normal entre as elites de países periféricos, e pode não significar um ensino exatamente ruim. O resto é propaganda do governo a ser relevada. Um abraço e escreva mais.
Caro Franklin, obrigado pela leitura atenta. Eu não pretendi fazer uma análise exaustiva da política salarial chinesa, apenas dar um contraponto à descrição equivocada do artigo de Antunes. Usei o iPhone por causa disso. Os salários na China, de forma geral, vêm tendo ganhos reais, a ponto de levar muitas fábricas a abandonar o país por causa do crescente custo trabalhista. As fábricas de sapatos no Vietnã são um exemplo.
Dadas as dimensões da China, também há movimentos internos. A própria Foxconn está transferindo parte de sua produção de Shenzhen para regiões mais pobres e longe da costa em busca de salários mais baixos, como Chengdu (sudoeste).
Quanto ao ensino superior chinês, não é que seja necessariamente fraco, mas acho um exagero dizer que se trata de um sistema “de excelência”. E um dos principais problemas são os limites à liberdade de expressão, com um terrível impacto principalmente nas áreas de humanas.
Dito isso, o país vem conseguindo criar um sistema de universidades de elite, atraindo bons alunos e professores e alocando generosos recursos para pesquisa. E os cursos de letras são bastante eficientes. Conheci vários chineses que estudaram português e alcançaram um bom nível da língua. Todos tiveram a chance de morar no exterior durante a graduação, inclusive no Brasil.
Fabiano, muito bom seu artigo. A China é apenas um grande país com 1,3 bilhões de pessoas trabalhadoras, disciplinadas, mártires de uma história de 5.000 anos, querendo progredir e viver melhor. Mas, como disse Napoleão, “o dia em que a China acordar, o mundo tremerá”. E quem acordou a China foram os americanos, tentando isolar a extinta União Soviética, que hoje nem mais existe! Se os americanos lessem um pouco mais de história, teriam lido Napoleão e teriam entendido que a União Soviética nunca foi uma ameaça a sua hegemonia, mas a China sim, não por que tenha essa intenção, mas apenas porque existe e está acordada! Os ingleses foram mais sábios, ganharam dinheiro lhe vendendo ópio, a doparam e a colocaram para dormir!
comentario lucido !
É tão raro um texto imparcial nesse país… Você é um sopro de brisa, viu? 😀
Agradecimentos a parte, é mais complicado ainda basear uma análise econômica ou política pautado apenas no conhecimento elaborado nas universidades ocidentais – US/UK – sobre a China. Uma alternativa – talvez – seria a Índia, com descontos absurdos as visões predominantes. Enfim, acho que o Brasil perde muito focando apenas nas antigas economias. Seria um sopro de vida para a academia brasileira se mandássemos nossos pesquisadores para os outros países dos BRICS (a África do Sul seria um verdadeiro espanto, nesse sentido). De qualquer forma, obrigada pelo artigo e continue com o ótimo trabalho! 😀
Fabiano,
sempre aprendo sobre China lendo seus artigos,
referente “Bo Xilai, o conservador líder neomaoísta recém-expurgado”
o que é ser CONSERVADOR na China e como é chamado os que divergem dos conservadores, quais suas propostas ?
aqui no Brasil Bo Xilai seria chamado de Progressista, contra reformas.
Conservadores x Progressistas no Brasil,
Progressistas são aqueles que querem manter tudo como está,
os Conservadores são aqueles que querem mudar, fazer as reformas.
Presidenta Dilma é defina como uma progressista, mas acabou de fazer uma reforma na previdência pública para futuros concursados que sempre foi defendido pelos conservadores e abominado pelos progressistas.
Caro João, o termo “conservador” pode ser mesmo um pouco impreciso. No caso do Bo Xilai, ele está ligado a outras lideranças dentro do PC, principalmente Zhou Yongkang, um dos nove integrantes do Comitê Permanente, mais refratárias a alguma abertura política. Zhou é o encarregado da segurança interna, e no seu período aumentou muito a repressão a dissidentes.
No campo oposto está o premiê Wen Jiabao, defensor de “reformas” políticas, embora, em dez anos, nunca tenha explicado bem o que ele quer dizer.
“…usavam um confiável HTC, espécie de genérico da Apple, com tela sensível e outras funções bem parecidas.”
Barbaridade, os celulares da HTC usam sistema Android e são, em muitos aspectos, superiores aos iPhones. Conheço gente que trocou seu iphone por aparelhos da HTC e estão plenamente satisfeitos.
Tenho lido sempre seus comentários e sempre gosto do que leio. A coluna : China Paranóia ou Mistificação me faz afirmar que meu querido ex aluno tem cada vez mais muito a me ensinar.