O passado chinês não é mais como era antigamente
25/06/12 17:17Fabiano Maisonnave, de Datong (Província de Shanxi)
O cardápio do restaurante Feeling, no centro de Datong, afirma que o local é tão antigo quanto o Brasil: funciona de forma ininterrupta “há cerca de 500 anos”, aperfeiçoando as receitas mais tradicionais desta milenar cidade do norte chinês.
Mas o nome Feeling não aparece em nenhum dos três guias de turismo que consultei. E um pintor de paredes montado sobre andaimes do lado de fora mais o cheiro de novo no interior revelam que a idade do local deve ser contada em meses, e não séculos.
Decorado ao estilo “tradicional chique”, o restaurante ocupa uma das centenas de construções recém-erguidas ou em obras no centro. Daqui a pouco, toda a vizinhança será assim: prédios “históricos” inaugurados ontem.
Por trás disso, está a ideia de diversificar a economia de Datong, que hoje gira em torno de suas imensas reservas de carvão, a principal fonte de energia da China.
A chamada Capital do Carvão tem vocação turística até há pouco deixada em segundo plano. A 15 km do casco urbano, estão as impressionantes cavernas de Yungang, que abrigam cerca de 51 mil esculturas de 2.500 anos, incluindo um Buda de 17 metros.
Outro passeio imperdível é o Monastério Suspenso, encravado no meio de uma montanha por volta do ano 491.
Com muito dinheiro em mãos vindo do carvão, o governo local decidiu incentivar o turismo remodelando o centro da cidade, ocupado por comércio popular e por labirintos de hutongs, a versão chinesa dos cortiços.
A ideia, porém, não é fazer algo como o Pelourinho baiano: não se trata de restaurar, e sim de passar o trator em quase tudo e erguer uma nova cidade com prédios “históricos” inspirados na dinastia Ming (1368-1644).
A invenção do passado, como já ensinou o historiador Eric Hobsbawm, está longe de ser uma novidade, e sobram exemplos pela China. Mas eu nunca havia visto na escala que está sendo feita nesta cidade de 1,2 milhão de habitantes.
Apenas em 2009, foram demolidos 820 mil metros quadrados, o equivalente 22,8 mil casas do projeto Minha Casa, Minha Vida.
E falta muito para derrubar. Nos hutongs, áreas já tombadas convivem com casebres ainda habitados, num cenário que lembra uma cidade arrasada por um terremoto.
Ao mesmo tempo em que tudo vai ao chão, já há quadras e quadras de prédios impecáveis, numa mistura de história com fantasia.
Caminhar por ali é como estar num cenário de filmes como o “O Tigre e o Dragão”_não me surpreenderia se um lutador de kung fu aparecesse saltando de telhado em telhado.
Nem mesmo os poucos prédios realmente históricos da região foram poupados da sanha revisionista. Aos dois salões do século 12 do templo Huayan foram acrescentadas pelo menos outras oito construções “antigas”.
Agora, esculturas de 800 anos convivem lado a lado com outras recém-saidas do talho, sem nenhuma explicação para que se distinga uma da outra.
Tudo está sendo cercado por uma enorme muralha nova de 12 metros de altura e 12 km de extensão. No passado, uma fortificação semelhante protegia o centro, mas foi destruída tanto na iconoclasta era Mao quanto na febre de construção dos anos 1990.
Custo oficial da repaginação: US$ 7,4 bilhões, ou 17 reformas do Maracanã.
E há o preço social: milhares de famílias foram desalojadas e levadas para a periferia. Em maio do ano passado, protestos deixaram cerca de 40 pessoas feridas e levou a cidade a decretar toque de recolher.
Idealizador do projeto, o prefeito de Datong, Geng Yaobo, admitiu em abril que “ninguém quer se mudar. Mas pedaços da herança cultural estão desaparecendo numa velocidade que mal nos dá tempo para esperar. Tivemos de agir.”
Ele estima pagar toda a extravagância com a eventual chegada em massa de turistas a partir de Pequim. Até o fim do ano, um trem-bala reduzirá a viagem até a capital das atuais seis horas para pouco mais de uma hora.
Por conta da remodelação, os ingressos já ficaram mais caros: para visitar Yungang, por exemplo, desembolsei 150 yuan (R$ 49). Quatro anos atrás, quando o megaprojeto começou, o preço era apenas 40 yuan (R$ 13).
É muito mais do que os 60 yuan (R$ 19,50) cobrados na Cidade Proibida. E o valor ficou alto demais para a população mais pobre da Província de Shanxi, onde o salário mínimo oficial é de apenas 790 yuan (R$ 256).
Geng disse que cerca de 3 milhões de turistas visitarão a cidade nos próximos anos. É bem provável, mas não sei como o frágil Templo Suspenso, mantido a 75 metros da base da montanha por vigas de carvalho, suportará tanta gente. Que a solução não seja substituir a madeira por concreto armado pintado de marrom.
Nada mais me surpreende na China. Em teoria da Arquitetura, diz-se que a produção Arquitetônica do presente momento reflete a cultura e identidade do povo. A tal milenar sociedade Chinesa mudou tanto nas últimas décadas que agora está a procurar a sua própria identidade olhando em outras. Surge então cidades em estilo Inglês, Suíço, Italiano, e porque não em estilo Chinês. Só que ao invés de buscar referências no passado para vislumbrar um futuro, estão simplesmente copiando sem reflexão.
Meio triste de ver isso.
A julgar pelas fotos até que achei interessante. Só espero que olhando de perto não pareça aquela coisa de parque temático juvenil. E eles deveriam deixar bem claro o que é autêntico e o que não é. Essa história de 500 anos é uma graça. Acho positivo dar uma incrementada com novas atrações (quando bem feitas) e num lugar em que isso se justifique. Tb me pareceu bem-intencionado o prefeito. Na medida em que seja possível julgar suas intenções por três ou quatros frases… haha
Lembrei de uma passagem de um romance do Fitzgerald em que os protagonistas discutem isso. Era uma casa de um tal lá da história americana – um militar das antigas, me parece – transformada em museu. E eles criticavam a falta de clima porque a pintura estalava de nova, plaquinhas do tipo “onde fulano escovava os dentes”, essas coisas. De fato, acaba tirando toda graça. A Europa, em geral, têm ótimos exemplos de preservação inteligente.
Me amarrei no monastério, Fabiano. Deu mó vontade de conhecer. Sem muitos turistas por perto, se possível. Um dia dou as caras lá. abs
ps: só pra constar, o livro do Fitzgerald é “Belos e malditos”. Longe de mim querer dar dicas literárias, mas vai que alguém se interessa. E como os comentários andam um pouquinho menos ranzinzas e mais lúcidos dessa vez, me arrisco a ser sociável. 🙂
O passeio vale a pena, sim, tanto pela parte histórica quanto para ver in loco a construção de uma cidade que vai nascer com 600 anos.
Sobre a relação com o passado em armadilhas turísticas, eu me lembro de um show de música cajun em Nova Orleans. Num intervalo entre uma canção e outra, um dos músicos disse.”Agora, vamos cantar a música cajun mais tradicional. E se não for, vocês nunca vão saber.”
Vou visitar as cavernas e o monastério em julho. Embora eu não vá ficar na cidade vou tentar prestar atenção nesses aspectos. Um amigo chinês já havia me falado que essa é a prática da China e isso vem sendo feito há muito tempo. A própria muralha da China passou pelo mesmo processo. Não acho que seja tão fácil julgar porque por outro lado mantém a atmosfera de uma cidade antiga e impulsiona o desenvolvimento de fontes alternativas de renda. Definitivamente uma cidade que dependa apenas do carvão está muito mais à mercê de perder qualquer patrimônio histórico do que caso aja para criar uma área turística, ainda que inspirada e não exatamente real.
Caro João Paulo, é uma viagem que vale a pena fazer. Sobre a reforma em Datong, as obras provocam esta sensação de que, na China de hoje, tudo é possível: trem-bala para todos os lados, torres gigantescas, pontes quilométricas, metrôs, enfim.
Sobre a arquitetura em si do centro, nada contra, desde que o turista não seja enganado a pensar de que realmente se trata de um prédio histórico. Mas emendar o templo Huayan, como fizeram, é criminoso. Ainda bem que, aparentemente, não há nenhuma ameaça desse tipo nas cavernas de Yungang.
Acabei de visitar a cidade e fui em todos os lugares citados. Realmente há uma interpretação completamente diferente no conceito de preservação história que temos no Brasil e mundo ocidental. Enquanto preferimos deixar tudo intocado para ficar o mais próximo possível do original (ex. Atenas, Roma), os chineses fazem várias intervenções. É uma comparação perfeita para discutir o conceito de aura de Walter Benjamin.