A China e a importância do contato sobre o contrato
18/07/12 10:50Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai
Uma revista em inglês de Xangai publicou há duas semanas um artigo interessante de capa, cujo tema é o que pensam os chineses dos ocidentais aqui. O artigo não é exatamente um desagravo. Mas os chineses sabem que os ocidentais reclamam frequentemente do comportamento das pessoas e de várias peculiaridades da vida local. A bem da verdade, nisso a China não é muito diferente de outros lugares. O esporte preferido de estrangeiros no mundo inteiro é falar dos problemas e desconfortos do local onde estão vivendo.
Xangai tem uma paixão e uma mágoa antiga com os de fora. Os estrangeiros sempre deram à vida local um toque de internacionalização que leva os xangaineses a se sentirem à frente de pessoas de outras partes da China. Mas a cidade tem feridas do passado. Da metade do século 19 até o final da Segunda Guerra, ela foi dividida em concessões estrangeiras, como se boa parte dela não pertencesse aos seus habitantes nativos. Foi nesse período que se postou, em uma das entradas da concessão inglesa, a famosa placa que até hoje é motivo de inconformidade. Dizia: “Proibida a entrada de chineses e cachorros”. Mais insultante, impossível.
Pois o artigo da revista, entre muitos comentários pertinentes, contém uma observação interessante de um empresário local. Ele diz mais ou menos o seguinte: “Tenho sócios ocidentais e me dou bem com eles. Mas ouço meus amigos chineses dizerem frequentemente que os estrangeiros se comportam nos negócios como verdadeiros marcianos. Tenho de concordar.” Gostemos ou não, essa é a imagem que os chineses têm de nós.
Os ocidentais frequentemente também se sentem em Marte quando entabulam entendimentos de negócios com os chineses. Muitos brasileiros pedem-me para detalhar quais são os grandes pontos a serem notados. Seleciono três que me parecem particularmente relevantes.
O primeiro, a importância da confiança pessoal. Nas práticas ocidentais, preço e qualidade definem uma boa compra ou venda. Na era da internet, os negócios muitas vezes prescindem dos contatos pessoais. A troca de e-mails é mais que suficiente. Na China, não é assim. Para fazer um bom negócio, é preciso estabelecer uma relação pessoal com os interlocutores ou parceiros. E, sobretudo, sentar à mesa de refeição. Os bons negócios selam-se num jantar.
Outro dia, casualmente, perguntei a um chinês: você bebe? Ele me respondeu: só a trabalho. Isso dá uma idéia de como é importante o convívio social-profissional. Beber com clientes, fornecedores ou parceiros potenciais, ainda que não se aprecie a bebida, é obrigatório. Fumar com eles, quando se tem o hábito, também pode contar ponto. Mas não é obrigatório. Você pode até se posicionar na mesa do lado dos que não fumam e todos o entenderão.
O segundo ponto a notar tem a ver com o ritmo do que é trazido à tona. No Ocidente, numa boa reunião de trabalho, frequentemente alguém define os temas em jogo e eles são resolvidos em ordem. Na China, os temas aparecem pouco a pouco, nunca de uma vez só. Às vezes, nem aparecem, apesar de serem importantes. Você os descobre de repente. Muitas vezes, tudo parece resolvido, até que alguém lança uma questão, uma dúvida, um problema que estremece as bases todo o entendimento alcançado até então. A cultura oriental é assim. As pessoas são educadas para não se mostrar por inteiro. E transferem esse comportamento para o mundo das idéias e dos entendimentos comerciais. Há sempre espaço para que algo novo venha à tona. Não se surpreenda.
O terceiro está no valor dos contratos. No Ocidente, somos todos reféns dos advogados. Os contratos estão acima de qualquer entendimento verbal ou da lógica intuitiva. Na China, não. Os advogados aparecem no fim de tudo e o que escrevem tem valor apenas relativo. É muito comum os contratos chineses serem emendados à mão e assinados como se fossem texto limpo. São esquecidos no momento seguinte à assinatura.
O que são os contratos? São os documentos que registram a obrigação de cada uma das partes e, sobretudo, as providências a serem seguidas se e quando uma das partes não cumprir o pactuado. Na China, se houver confiança, as desavenças são resolvidas por entendimento, independentemente de quem tenha razão nos termos do que foi contratado.
Em outras palavras, os contratos valem pouco, os contatos valem muito. Um “erre” a menos faz um oceano de diferença. Levantar a letra do contrato como forma de obter algum resultado é recurso de ultimíssima instância, quando o relacionamento no curto e no longo prazo já é dado como perdido. E, se for inevitável tal extremo, a idéia prevalecente é submeter a controvérsia a uma terceira parte, a um árbitro consensuado. Essa é uma prática herdada da vida familiar chinesa. Quando os familiares divergem, escolhem alguém poderoso na família para decidir a causa.
De uma maneira geral, os chineses e os brasileiros se entendem com facilidade. Nem nós nem eles somos excessivamente rígidos na reflexão e nas atitudes. Acostumados a realidades difíceis, somos pouco dogmáticos. Contornamos os problemas com uma boa dose de flexibilidade. Há, é verdade, um “gap” cultural que se impõe inevitavelmente. Mas ele não é intransponível. Precisa apenas ser encarado com naturalidade e bom senso.
No Brasil, diz o dito “amigos, amigos, negócios à parte”. Na China, as amizades conduzem comumente a um negocinho. Bons amigos sempre encontram uma associação, um risco a tomar juntos. E nisso selam definitivamente a amizade. Quando se desentendem sobre dinheiro, é para sempre.
Mas os chineses também sabem transformar bons negócios em boas amizades. Para eles, as duas coisas andam juntas. Quem entender isso já estará no meio do caminho para operar bem aqui.
Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias. Excepcionalmente nesta semana o artigo saiu publicado na terça.
Nota do editor do blog: devido a um curto período de férias e a uma inesperada ausência de internet, o blog ficou desatualizado por alguns dias. Peço desculpas pela falta de aviso prévio.
Os contratos nao sao tao “serios” assim no brasil, como muitos querem descrever, principalmente nos contratos de locacao, muitos locatores sabem do que estou dizendo !
Poxa, que interessante. Essas diferenças são muito ricas e deve ser muito divertido observar isso de perto. Sabe que uma vez assisti numa madrugada meia “sombria” um curta-metragem rodado em Minas onde dois compadres discutiam o preço de uns bois que queriam negociar um com o outro. A discussão de preço se estende por dias e semanas num tal de pechinchar, negacear, elogiar, pôr defeitos. E o tempo vai passando. Nisso chega um sujeito da cidade que recentemente andou comprando uma fazenda na região. Ele fica sabendo da venda dos bois e aparece na casa do vendendor numa dessas camionetes possantes. Aí pergunta o preço dos bichos: o mineiro coça o queixo e começa devagar “mas são umas rezes boas demais da conta” e toca a elogiar os animais. Aí o rapaz da cidade se cansa um pouco e pergunta: “tá bom, seu fulano, mas quanto que o senhor tá querendo neles”. O preço, claro, foi jogado lá pra cima como foi feito na negociação em curso com o compadre, seu vizinho. Pra surpresa do vendedor o rapaz exclama: “Negócio fechado. Vou fazer o cheque agora e o senhor faz favor de mandar entregar na fazenda não sei das quantas”. Aí o mineiro exclama: “mas o senhor vai fechar assim, agora mesmo?” “Vou o senhor tem razão. São uns belos animais”. E aí o mineiro atalha “Mas o senhor vai me desculpar, mas vou desaceitar o negócio”. E aí é a vez do rapaz da cidade ficar atordoado. O curta termina com os dois compadres negociando o preço dos bichos novamente e num valor muito menor do que iria pagar o fazendeiro novo. Um belo filminho. Que, como é certo, encontrou impossibilidades de exibição nas grandes emissoras e nos cinemas, que preferem passar na maior parte abobrinhas mil do que reconhecer boas produções modestas.
haha… De fato, a frase aí mais insultante, impossível. A vida tem dessas coisas. E até isso confere uma riqueza histórica. E às vezes foi coisa que partiu da cabeça de meia dúzia de esnobes de plantão e a repercussão se torna imensa.
caro embaixador,
sempre muito bom ouvi-lo!
como sempre, compartilha o seu conhecimento da cultura asiática, fazendo a exposição de forma clara e sucinta. E, ao estabelecer parâmetros de comportamento entre povo brasileiro e chinês, traz ao alcance do leitor brasileiro, uma cultura, aparentemente distinta e misteriosa.
Excelente descrição da forma chinesa de fazer negócios. Uma vez ouvi de um chinês que ele não gostava de negociar com quem não se dispusesse a sentar numa mesa para comer, beber e jogar conversa fora antes de qualquer outra coisa. Numa mesa com boa comida e bebida é que realmente se conhece uma pessoa e ele não gostava de negociar com esta desvantagem, principalmente com pessoas de outras culturas. Com comida e bebida as pessoas mostram como realmente são e as diferenças culturais se reduzem, pois todas as culturas gostam de comer e beber.
Meu caro Marcos, mais um artigo excelente! Como dizemos em nossa gíria, você “acertou na mosca!” Parabéns. E o jogo de palavras envolvendo o “contrato” e o “contato” ficou perfeito e funciona bem em muitas línguas ocidentais.