A opéra Turandot como metáfora da China
17/08/12 08:57
Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro
Turandot foi a última obra de Giacomo Puccini e uma de suas melhores. Concluída em 1926, pouco mais de um ano após sua morte, tem algumas versões com finais diferentes em razão dos diferentes compositores que se dispuseram a terminá-la. Alguns aficionados questionam a qualidade do final dessa ópera em relação às partes que o precedem e que foram compostas por Puccini.
Ambientada na China, essa ópera conta a história de uma linda e cruel princesa, Turandot, que odiava os homens e não queria se casar e se entregar a ninguém, traumatizada que estava pela história da princesa Lo-u-Ling, uma de suas ancestrais que teria sido estuprada por um invasor estrangeiro de origem tártara em uma das constantes guerras que envolveram a China nessa época.
O imperador Altum, seu pai, queria um sucessor para a princesa e por isso a pressionou para que aceitasse casar com algum príncipe estrangeiro. Muito a contragosto, Turandot aceitou a pressão de seu pai, mas colocou como condição que o escolhido teria de resolver três enigmas que ela colocaria e somente então seria aceito. Caso seu pretendente falhasse em resolver qualquer dos três enigmas, pagaria com sua própria vida. Três chances para morrer e apenas uma para viver ao lado da linda princesa.
Vejo muitas semelhanças entre Turandot e a própria China, com sua história de constantes guerras e invasões estrangeiras, passagens cruéis e também a grande desconfiança que os estrangeiros despertam nos chineses. Assim como a princesa Lo-u-Ling, estuprada e morta por estrangeiros, a China foi invadida diversas vezes, ocupada pelos mongóis, pelos europeus, pelos ingleses por mais de um século e pelos japoneses, que a vandalizaram por mais de 20 anos.
Assim como Turandot, a China desconfia do estrangeiro e a eles não se entrega. Além de mongóis, ingleses, europeus e japoneses, os chineses não se entregaram aos camaradas soviéticos e mais recentemente aos charmosos norte-americanos.
Se a beleza de Turadot cativava os príncipes que se arriscavam a perder sua vida pela chance de casar-se com ela, a China de ontem e de hoje sempre exerceu forte fascínio sob as outras nações do mundo por razões culturais, sociais, econômicas e geopolíticas. Por isso, as várias invasões e ocupações e tentativas das mais diversas de aliciamento e alinhamento aos interesses dessas nações.
Da mesma forma que Turandot colocou a solução dos três enigmas como condição para que ela aceitasse seu pretendente, a China sempre representou um enigma indecifrável para todos os países que tentaram ocupá-la ou mesmo dela se aproximar. E de alguma maneira a China sempre se livrou de seus invasores e de todos que de uma forma ou de outra tentaram dela tirar proveito. Talvez porque nenhum deles jamais tenha conseguido solucionar o enigma que ela coloca.
Ainda mais recentemente, com o agravamento da crise econômica ocidental, os olhos da comunidade econômica e da imprensa se voltam muito mais para entender o que se passa na China do que para entender e consertar seus próprios problemas.
A intelligentsia ocidental tem se dedicado muito mais a demonizar o que está acontecendo na China, se o modelo chinês está fracassando, se temos um pouso forçado na sua economia ou se estamos vendo o início precoce da sua decadência ao invés de se debruçar sobre seus próprios problemas.
Para um leitor menos avisado, pode parecer que o problema econômico do mundo está na China, e não na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão. A China em crise cresce de 7% a 8% ao ano, enquanto o Ocidente em crise desde 2008 não cresce ou cresce abaixo de 2% ao ano. É o fascínio que Turandot exerce sobre os príncipes da economia ocidental.
Os dois últimos povos a tentar decifrar o enigma chinês que fracassaram foram os soviéticos e os americanos. Os marxistas-leninistas soviéticos, que apoiaram a revolução comunista de Mao Zedong, de certa forma queriam colocar a China na mesma situação tutelar que impuseram a toda Europa Oriental. Mas a China é a China, não se dobra nem se submete. A relação dos chineses com os soviéticos esfriou de tal maneira que acabaram se envolvendo em combates fronteiriços e com as relações econômicas e diplomáticas estremecidas por décadas. Talvez porque os soviéticos foram incapazes de decifrar o enigma da China, assim eu penso.
O esfriamento das relações entre soviéticos e chineses criou a oportunidade para que um novo pretendente se aproximasse, agora os americanos, interessados no fortalecimento da China em relação à União Soviética. Apesar da incompatibilidade entre o sistema politico e econômico americano em relação aos chineses, valeu para ambos o velho princípio de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.
Turandot e seu novo príncipe pretendente iniciaram uma aproximação que também durou décadas, com vantagens mútuas e muitos interesses não confessos. Mais uma vez, o príncipe não foi capaz de desvendar o enigma de Turandot e a relação entre eles vem se deteriorando ultimamente.
Voltando à ópera, um príncipe desconhecido que na realidade se chamava Calaf e que era filho do imperador tártaro Timur resolveu arriscar sua vida e tentar resolver os três enigmas encantado que estava com a beleza e a determinação da linda princesa. Como sua origem era o mesmo povo tártaro que havia barbarizado a princesa Lo-u-Ling, resolveu esconder sua origem e seu nome, se apresentando como o príncipe desconhecido.
Apresentado aos enigmas, o príncipe desconhecido resolveu os três, colocando a princesa em completo desespero, pedindo ao seu pai que não a entregasse a esse príncipe desconhecido. Este, apaixonado que estava pela princesa, não queria ficar com ela se não fosse pela sua própria vontade. Ofereceu a ela a possibilidade de se libertar de sua promessa de casamento caso ela descobrisse qual era o seu nome. Deu-lhe uma noite para descobrir e revelar seu nome, quando então estaria liberta de sua promessa, e ele, o príncipe desconhecido, condenado a morte.
É nesse momento que o príncipe, tenor, entoa uma das mais belas árias compostas para uma ópera, Nessun Dorma, que significa “que ninguém durma”, ordem dada pela princesa a todos seus súditos até que fosse descoberto o nome desse príncipe desconhecido.
O pai do príncipe desconhecido e sua escrava Liu, apaixonada pelo príncipe e que com ele foram vistos pelos súditos da princesa, foram presos. A escrava Liu, por ordem da cruel e determinada princesa, foi torturada até a morte sem que revelasse o nome do príncipe que tanto amava e que não queria morto.
Para desespero de Turandot, a aurora chega sem que ela descubra o nome do príncipe. Este, emocionado pela tristeza e desespero da princesa vai até ela e revela seu nome condenando a si próprio à morte.
A princesa, também emocionada por tal demonstração de amor, ao invés de mencionar seu nome, se livrar da promessa e condenar o príncipe à morte, prefere dizer que seu nome é Amor.
É uma linda ópera que recomendo a quem não assistiu ou ouviu que o faça. Quem já o fez que faça de novo para relembrar.
Embora italiana, essa ópera tem todo o cenário e a musicalidade oriental e em tudo nos lembra a China, até na natureza simbólica dos seus personagens. Até onde a influência da China sobre a Itália, presente nos achados de Marco Polo e na eventual influência chinesa no período Renascentista italiano, está presente nesta ópera, é uma questão para os especialistas.
O que mais me chamou atenção e me levou a testar com os leitores essa comparação foi a semelhança entre a personagem principal e a própria China e sua história. A enigmática China, ao mesmo tempo misteriosa, bela, cruel e que tanto encanta, surpreende e assusta a todos que com ela se relacionam.
A verdade é que o enigma da China está posto, e todos aqueles que não conseguirem decifrá-lo serão, metaforicamente, devorados por ela como de certa forma o foram os tártaros, os mongóis, os ingleses, europeus, japoneses, russos e americanos.
Não sabemos como decifrar esse enigma, mas por tudo que tenho visto e aprendido com os chineses nesses oito anos que tenho me relacionado com eles talvez a resposta não esteja na dominação, no aliciamento ou numa relação bilateral hegemônica ou de vantagens obtidas em qualquer sentido.
Assim como o príncipe Calaf conquistou a princesa Turandot com sua doação e abnegação amorosa, quem deseja conquistar a amizade da China talvez tenha que fazer algo parecido. Mas, como a história nos mostra, é impossível superar os interesses hegemônicos em uma relação entre nações. Talvez o coração desta donzela chamada China seja, efetivamente, inconquistável! Assim como Puccini não viveu o suficiente para completar sua maravilhosa ópera Turandot, talvez a toda a história da humanidade não seja suficiente para completar a ópera da China, talvez interminável. Na China, o tempo não conta!
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras. Excepcionalmente, sai nesta terça-feira.
enquanto isso, poderia informar os (eventuais) publicações já lançados?
Meu acervo literário se restringe a uma dezena de artigos neste blog. Estou trabalhando num longo artigo sobre economia tentando sintetizar três grandes correntes econômicas da Idade Contemporânea, os Fisiocratas, os Marxistas e os Liberais Clássicos. Não sei se você se interessa sobre Economia mas se publicar, aviso.
Agradeço as referencias elogiosas mas escrever todo dia ainda não é possível pois tenho minhas atividades profissionais. Quem sabe no futuro. De toda forma é estimulante.
Sua coluna deveria ser publicada diariamente
Excelente sugestão!
Prezado, ma che bello!! Ao final deu vontade de mudar a pagina e continuar lendo sem parar como um livro que nos faz viajar e nao queremos que acabe. Expor conhecimento sobre a china sempre causa polemica… mas dessa vez… so admiracao!