As cidades-fantasmas chinesas
28/08/12 08:05
Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro
Em recente artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, Fabiano Maisonnave, correspondente da Folha em Pequim, abordou a existência de cidades-fantasmas na China. Enormes complexos urbanos, construídos com toda a modernidade e infraestrutura se encontram desabitados e são usados como exemplo de desperdício de capital e como consequência, de uma suposta bolha imobiliária chinesa.
Os exemplos de cidades-fantasmas no nosso imaginário estão quase sempre associados à decadência econômica de uma região ou mesmo ao esgotamento de uma riqueza ou fonte de trabalho que justifique as pessoas permanecer morando nessas áreas. Acidentes naturais ou mesmo provocados pelo homem como o acidente nuclear de Chernobyl, bases militares abandonadas são outros exemplos comum de cidades-fantasmas. O caso chinês representa um exemplo único onde essas cidades se tornam fantasmas mesmo antes de serem ocupadas.
Inegavelmente, esses complexos urbanos desocupados são testemunhas de falhas do planejamento chinês e representam uma forma de desperdício, considerando o fato de que, construídos há alguns anos, esses complexos ainda não cumpriram seu objetivo, que seria abrigar populações rurais que se deslocam para as cidades. Gostaria de abordar esse tema pelo ângulo econômico e também sob o ângulo da eficiência das políticas publicas chinesas.
Sob o ponto de vista econômico, é fato que essas distorções só foram possíveis face ao primitivismo do mercado financeiro chinês, que monopoliza a poupança privada e permite uma alocação menos eficiente do capital por não oferecer aos poupadores chineses outras opções de investimento.
Essa falta de alternativas para aplicação da imensa poupança gerada pelos chineses tem criado, além dessas cidades-fantasmas, algumas centenas de milhares de residências e apartamentos desocupados por toda a China. O desenvolvimento do “shadow lending”, mecanismo pelo qual as pessoas aplicam seus recursos a taxas de juros muito maiores aquelas obtidas no sistema financeiro emprestando diretamente a tomadores finais e o investimento direto em atividades produtivas são outras distorções que têm origem nesse primitivismo do mercado financeiro chinês. Na impossibilidade de comprar ações de setores em franca expansão, muitos chineses, apoiados pelas autoridades provinciais, também optaram por investir diretamente na expansão da capacidade produtiva do país.
A indústria da construção na China é sem dúvida hipertrofiada para os padrões ocidentais, mas, do ponto de vista nacional, é uma maneira eficiente de fixar a poupança no próprio país em obras de infraestrutura e residências para uma população de mais de 1,3 bilhões de pessoas. Sabemos pela análise de outros países que a inexistência de mecanismos e instituições sólidas para absorção da poupança leva à fuga de capitais para outros países, como o exemplo da América Latina o bem demonstra.
O extraordinário excedente econômico gerado pela China (excedente econômico é o produto de um país que excede seu consumo) tem de ser aplicado no investimento local ou no comércio exterior. A falta de mecanismos financeiros e a crescente dificuldade que a China vem enfrentando para alocar seu excedente econômico no comércio exterior levaram o direcionamento de recursos para obras de infraestrutura faraônicas ou mesmo para a construção das cidades-fantasmas como as mencionadas neste artigo.
Do ponto de vista puramente econômico, não obstante a ineficiência por trás desse fenômeno, deve-se mencionar que tudo isso vem sendo feito e construído com recursos do próprio país e à custa da própria sociedade chinesa, não representando endividamento em relação ao exterior, a exemplo do endividamento americano ou europeu. O potencial estrago de investimentos menos eficientes feitos com recursos próprios é muito menor do que aqueles realizados com recursos externos.
Excluído o aspecto negativo acima mencionado, relacionado à questão econômica, defendo a tese de que do ponto de vista social e de políticas publicas, esses exemplos mostram o lado positivo do processo de urbanização chinês. Primeiro, por construir previamente as residências e toda a infraestrutura urbana para abrigar esse movimento migratório. Segundo, por evitar ocupá-las enquanto os empregos para as populações oriundas do campo não forem criados.
Comparando com os exemplos de urbanização ocorridos na América Latina, incluindo o Brasil, nem as residências com a necessária infraestrutura foram construídas previamente nem os empregos de qualidade para contemplar esse fluxo migratório foram criados. Como consequência, o que vimos foi um processo de favelização e aumento do subemprego. O maior produto do processo de urbanização desenfreada na América Latina e no Brasil não foram as cidades-fantasmas à moda chinesa, mas favelas, pobreza e criminalidade.
Que algumas cidades e milhares de residências não tenham sido ocupadas e que os empregos para seus moradores ainda não tenham sido criados é uma pequena distorção que não podem de nenhuma maneira ser apresentado como sinal de falha ou fracasso do modelo econômico chinês como muitos querem fazer parecer.
Todo fato merece uma análise por óticas diferentes, e a minha interpretação da existência de algumas cidades-fantasmas na China é mais positiva do que negativa. O mesmo processo que criou essas cidades desabitadas gerou condições adequadas de vida e emprego para milhões de pessoas que viviam no campo numa economia de subsistência e em condições de vida pré-históricas.
Nos últimos 30 anos, a China mudou mais de 400 milhões de pessoas do campo para as cidades. Isso é mais do que toda a população da Europa ou dos Estados Unidos, que tiveram mais de dois séculos para proceder a essa mudança.
Algumas cidades-fantasmas que foram construídas antecipadamente não invalidam a dimensão da tarefa executada pelos chineses que representou o maior êxodo rural da história da humanidade. Certamente ainda há muito a fazer uma vez que nos próximos 20 anos outros 400 milhões de chineses deverão migrar do campo para cidade.
Como contraponto a essa situação temos que considerar a situação que enfrentamos em muitas cidades da América Latina, África, Índia e outros países asiáticos onde esse processo migratório do campo para as cidades tiveram como consequência o nascimento de milhares de favelas onde milhões de pessoas vivem em péssimas condições de urbanização e em um subemprego estrutural sem solução.
Essa situação também se verificou nas grandes cidades dos países desenvolvidos em algum momento de sua história. Quem não leu “Os Miseráveis”, de Victor Hugo ou não assistiu às “Gangues de Nova York”? Ou quem não leu sobre guetos das grandes cidades europeias criados em torno das fábricas que se seguiram ao fenômeno da Revolução Industrial?
Minha visão, sempre compreensiva em relação às mazelas dessa nação que tanto admiro, vê na existência de algumas cidades-fantasmas na China apenas uma pequena distorção nessa grandiosa obra, ainda mais significativa que a construção da Grande Muralha, que foi deslocar mais de 400 milhões de pessoas do campo para as cidades.
Com relação ao fato dessas cidades representarem algum sinal de bolha imobiliária, acredito que estejamos muito longe disso. Essas construções foram financiadas pela poupança chinesa que atinge hoje mais de 51% do Produto Interno Bruto do país, e não pelo fundo de pensão dos funcionários de alguma pequena cidade na Noruega como foi o caso da bolha imobiliária americana.
Certamente representam alguma forma de alocação inadequada de capital, mas em nada se compara aos movimentos especulativos e as artimanhas financeiras que verificamos no Ocidente anteriormente à grande crise de 2008, que acabou por comprometer bancos europeus e arrastar o mundo todo para uma crise comparável à Grande Recessão de 1929 e que até agora ainda não se resolveu.
Diferentemente da crise que afeta o Ocidente e que teve seu epicentro na crise imobiliária americana, o problema das cidades-fantasmas chinesas será resolvido naturalmente. A carência habitacional na China atinge hoje mais de 40 milhões de residências e milhões de pessoas que migraram do campo para a cidade ainda vivem em acampamentos industriais, longe de suas famílias por falta de habitações.
O maior problema que se esconde atrás dessas cidades-fantasmas é o fato de que os empregos que justificariam sua população não foram criados na velocidade necessária. Sem trabalho de qualidade, a vida nas cidades não se justifica e é natural que essas residências e infraestrutura fiquem desocupadas até que essa condição seja atendida.
Escrevi boa parte deste artigo em uma das minhas viagens na volta da Europa para o Brasil. Desembarcando no aeroporto do Galeão, no caminho para minha casa na zona sul do Rio, passei pelo Complexo da Maré, onde mais de 150 mil pessoas vivem em habitações de segunda qualidade, sem saneamento básico e sem as mínimas condições de urbanização, sem empregos de qualidade e em meio a elevados índices de criminalidade.
Pensei que talvez não fosse de todo mal se o Brasil, a exemplo da China, tivesse algumas cidades-fantasmas desocupadas. Seria um pequeno preço a pagar se com isso tivéssemos colocado um fim nessa imensa dívida social de nossas grandes cidades que são as favelas, o subemprego e as péssimas condições de vida que oferecemos aos nossos irmãos brasileiros menos favorecidos pelo nosso sistema político-econômico.
Olhando por esta perspectiva talvez seja mais fácil aceitar como um mal menor essa distorção do modelo econômico e das políticas públicas de inclusão social na China.
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias.
É sempre um prazer visitar esse blog dado o alto-nível daqueles que o fazem. Só espero que não cansem de falar da China em tantos breves artigos que já vão se somando. Ou que falte assunto pra falar da China. ; )
O José Carlos tem razão em frisar que há muito que admirar no extraordinário desenvolvimento chinês. E o partido comunista é sempre lembrado pelo seu monopólio do poder, mas há muito fica claro que ele representa algo do que há de mais vigoroso na ‘intelligentsia’ e na história desse país.
Mas lidar com massas humanas – e ainda mais na escala chinesa – é quase uma ciência do imponderável no longo prazo. Em poucos anos atingiremos 9 bilhões de pessoas no planeta e simplesmente não há a menor razão para haver tanta gente no mundo. Se daqui a pouco estaremos em condições de visitarmos outros planetas, não temos nenhuma razão para nos comportarmos nesse aqui como coelhos no que tange à planejamento social.
Caro Silvino, interessante seu comentário. A China é um país que adotou um dos mais radicais planejamentos demográficos que se tem notícia. A política de filho único é hoje criticada porque está transformando a China num país sem irmãos, tios e primos! Também é criticada por ser um país que está envelhecendo antes de enriquecer. Imagine se a China não tivésse feito isso como seria a situação populacional hoje. Mas não se preocupe com o futuro do blog pois sempre haverá algum assunto sobre a China. Um país com cinco mil anos de história e que é capaz de fazer em 30 anos o que muitos países não fizeram em 300 anos é uma fonte inesgotável de temas palpitantes.
Caro Martins, concordo que a possibilidade de uma bolha imobiliária é pequena e que é muito melhor ter cidades vazias do que favelas superpovoadas. A ansiedade chinesa em criar infraestrutura urbana, aliás, tem forte inspiração _negativa_ no caótico processo de migração campo-cidade latino-americano durante o século 20.
Também concordo que, para as Províncias, é melhor ter o dinheiro investido na própria região do que vê-lo sair para outro lugar ou fora do país.
Mas o mercado imobiliário chinês está exposto, a meu ver, a várias distorções bastante perigosas.
A primeira delas é o preço altíssimo e proibitivo nas principais cidades, resultado do excesso de especulação no setor, já que a China não oferece pouquíssimas opções de investimento.
Em Pequim, por exemplo, uma família de classe média tem economizar muito, muito para comprar um apartamento na cidade, onde a proporção preço-renda é, em media, de 11,6 (em países ricos, fica em torno de 4, segundo artigo recente do “FT”).
O sonho da casa própria é ainda mais distante para as classes baixas. Em Pequim, há a famosa “tribo do rato”: um milhão de pessoas vivendo em precários e ilegais apartamentos subterrâneos onde antes havia estacionamentos e nos antigos abrigos antiaereos da era maoísta. Não é tão ruim como a favela, mas está muito longe de ser uma moradia digna.
Desde o ano passado, o governo vem aumentando o combate no setor imobiliário, restringindo, por exemplo, o número de apartamentos que uma pessoa pode ter em Pequim. Mas uma queda brusca nos preços traz outro perigo: dezenas de milhares de pessoas compraram imóveis como forma de poupança e detestariam ver seu dinheiro acumulado evaporar. O economista Patrick Chovanec estima que um terço dos proprietários de imóveis na China investiu em pelo menos numa segunda propriedade, geralmente vazia. Em Pequim, afirma, são 3,8 milhões de imóveis residenciais vazios.
Com a desigualdade crescendo na China (também alimentada pelo mercado imobiliário), é difícil pensar que a “tribo dos ratos” terá chance de conseguir uma casa decente em Pequim. Migrantes, eles ganham pouco e ainda precisam economizar para pagar escola e saúde, cujo acesso é mais caro e limitado por causa do perverso sistema do hukou. O governo prometeu um amplo programa de moradias subsidiadas, mas o projeto está longe de deslanchar.
Há ainda o espinhoso tema das desapropriações, muitas vezes violentas e que impõem indenizações injustas e viciam os governos locais com uma renda que não é infinita. Mas paro por aqui, que o comentário já ficou muito grande.
Fabiano Maisonnave
Fabiano, concordo com suas colocações sobre as distorções existentes na China e a necessidade de correção, o que o governo tem tentado fazer com o desaquecimento da economia. Sem duvida precisa desregulamentar o sistema financeiro para acabar com a especulação imobilária e dar outras alternativas de investimento para os poupadores. Mas o fato é que essa poupança não migrou para fora do país e nem foi entesourada. Gerou empregos, movimentou a economia e as residências estão lá, prontas para serem usadas. Apenas procurei mostrar um outro lado da história não tão virtuoso mas menos negativo. Um país que saiu da pré-história para a modernidade em pouco mais de 30 anos merece alguma condescendência da nossa parte. Nós vemos no presente da China mazelas que ocorreram no passado de todas as grandes nações desenvolvidas. Porque nosso julgamento do presente chinês tem que ser mais duro do que o julgamento do passado das outras nações?