Plágio e fraude nas universidades chinesas
07/09/12 13:19
Por Eric Vanden Bussche, de Pequim
No ano passado, um professor de biologia de uma universidade de Wuhan passou a almejar o posto de chefe de departamento. Para isso, entretanto, seria necessário publicar um artigo numa revista científica no exterior. Esse professor então teve a ideia de pedir ajuda a um velho amigo, cuja filha havia se doutorado em biologia na Austrália. O diálogo entre ambos _presenciado por mim_ revela o preocupante estado do ensino superior na China.
“Será que a sua filha poderia me ajudar a publicar um artigo em inglês numa revista acadêmica na Austrália ou EUA?” perguntou o professor de biologia.
“Quando você me entregar o artigo, pedirei a minha filha para traduzi-lo ao inglês e encaminhá-lo a uma publicação científica norte-americana,” respondeu o seu amigo.
Mas a expressão no rosto do professor de biologia demonstrava certa inquietação. “É melhor que sua filha escreva o artigo. Se quiser, ela pode escrever sobre suas próprias pesquisas”, disse o professor de biologia. “Eu nunca redigi um artigo científico na minha vida e já não entro num laboratório há décadas.” Para convencer o seu amigo, ele prometeu uma generosa quantia em dinheiro.
Apesar dos investimentos do governo chinês em suas universidades e na contratação de professores e pesquisadores de renome internacional, o caso que acabo de relatar não é uma exceção e revela como o ensino superior do país ainda tem um árduo caminho a percorrer até conseguir oferecer cursos com a mesma qualidade das universidades norte-americanas e europeias.
Casos de fraude e plágio não são novidade na China. Segundo um artigo no “Epoch Times”, entre 2008 e 2010, 31% dos artigos na “Revista de Ciências da Universidade de Zhejiang”, uma das publicações acadêmicas de maior prestígio do país, continham trechos e ideias sem as devidas citações.
O jornal também assinalou que uma um terço dos 6.000 cientistas que responderam a uma enquete realizada pelo Ministério de Ciência e Tecnologia da China admitiram que já plagiaram, fabricaram e falsificaram resultados.
E um estudo recente da Universidade de Wuhan mostra que acadêmicos chineses _como o professor de biologia que citei no início do meu texto_ compram artigos para aumentar a sua lista de publicações. Segundo o estudo, o negócio de compra e venda de artigos e teses movimenta milhões dólares por ano.
O cientista Fang Shimin _mais conhecido como Fang Zhouzi_ tem provocado arrepios no meio acadêmico chinês por se dedicar em revelar tais casos. Durante a última década, ele expôs mais de mil. Seus esforços lhe renderam uma extensa lista de inimigos, que o acusam de macular a imagem acadêmica do país.
Em 2011, a revista “Legal Weekly” publicou um artigo de quatro páginas criticando Fang, no qual colegas dele afirmavam que ele não era “uma pessoa adequada para ser um amigo”. E há dois anos, Fang chegou a ser agredido fisicamente com um martelo por três homens contratados por Xiao Chuanguo, um pesquisador de renome da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, em Wuhan, centro-oeste da China.
Fang havia enfurecido Xiao ao tecer duras críticas sobre os métodos e resultados de suas pesquisas na área de medicina. Alguns meses após o ataque _que rendeu a Xiao uma pena de prisão de cinco meses_, o presidente da Universidade de Centro-Sul em Changsha disse aos participantes da reunião anual da Associação Chinesa de Ciência e Tecnologia: “Estamos numa época perigosa para defender a ética acadêmica”.
Os casos de fraude e plágio revelam um grave problema das universidades chinesas: a falta de inovação e criatividade. Muitos dos professores universitários que conheço, tanto na área de humanas quanto ciências exatas e biológicas, culpam o sistema educacional, que enfatiza a memorização e não estimula os alunos a desenvolverem a um senso crítico.
Até mesmo professores de renome com doutorados obtidos em universidades de elite na Europa e EUA se envolveram em escândalos. É o caso da estrela do Instituto de Antropologia da Universidade de Pequim, Wang Mingming, doutor pela Universidade de Londres. Em 2002, ele foi acusado de plagiar vários trechos de “Antropologia Cultural”, do professor da Universidade de Vermont (EUA) William A. Haviland. Aliás, estima-se que um terço de uma obra de Wang fora extraída do livro do antropólogo norte-americano.
Wang pediu desculpas e, como punição, acabou sendo proibido temporariamente de orientar alunos de pós-graduação, uma punição bastante leve se levarmos em conta que nos EUA e na Europa ele seria obrigado a encerrar a sua carreira acadêmica. Mas na China, onde há uma maior tolerância com casos de plágio e fraude, seus alunos na época publicaram uma carta aberta defendendo o seu orientador e acusaram o denunciante de tentar manchar a reputação da universidade. Wang continua lecionando na Universidade de Pequim até hoje e ainda é prestigiado no meio acadêmico.
Essa tolerância com tais deslizes é preocupante. Até mesmo Fang Zhouzi, que escolheu como sua missão de vida denunciar acadêmicos desonestos, mudou seu discurso quando a revista “Legal Weekly” acusou sua esposa Liu Juhua de plágio em sua dissertação de mestrado. Ao defender a sua esposa, Fang argumentou que as universidades chinesas não ensinam aos seus alunos como citar obras e por isso uma tese não deveria ser uma exigência para alunos de graduação e mestrandos.
Muitos culpam o modo de funcionamento do sistema universitário chinês. As instituições de ensino superior são controladas por burocratas do Partido Comunista chinês (PC), e a ascensão profissional, na maioria das vezes, ainda é determinada por critérios políticos, e não acadêmicos.
Para piorar a situação, desde a década de 90 o governo chinês tem priorizado números sobre qualidade acadêmica. O sucesso na educação superior é medido não a partir da inovação ou qualidade, mas pelo número de alunos e quantidade de publicações dos professores.
Nas últimas duas décadas, houve um aumento significativo de vagas nas universidades. Mas os críticos assinalam que isso resultou numa perda de qualidade do ensino, pois o número de professores não acompanhou o ritmo. Segundo o “Epoch Times”, entre 1999 e 2004 o número de alunos triplicou enquanto o de professores apenas duplicou.
E a ênfase das universidades no número de publicações de seus acadêmicos tem estimulado o plágio, a compra de artigos e a fabricação e falsificação de dados. Atualmente muitas universidades oferecem contratos de três anos ao seu corpo docente e estipulam um número mínimo de artigos que precisam ser produzidos durante esse período. Quem não atingir a quota não consegue renovar o seu contrato. Uma professora da Universidade Normal de Pequim me explicou que, com a adoção de tal sistema, ninguém se importa mais com o conteúdo e o valor da pesquisa. “Os acadêmicos chineses hoje estão publicando milhares de artigos por ano que ninguém vai ler,” me disse essa professora. “É um gasto de papel.”
Há dois anos, o premiê Wen Jiabao defendeu uma reestruturação das universidades chinesas para que deixem de ser uma repartição pública e se transformem em centros de pesquisa. A mensagem que ele queria transmitir era clara: a China precisa melhorar a qualidade de ensino e pesquisa em suas universidades para se consolidar como potência mundial. Para isso, é necessário que essas instituições sejam comandadas por acadêmicos em vez de burocratas. Mas a ideia do premiê Wen Jiabao acabou sendo alvo de críticas, em especial dos reitores, que na China gozam de um status semelhante a ministro de Estado.
Muitos acadêmicos chineses com os quais conversei acreditam que será muito difícil transformar o atual sistema educacional. Eu concordo com eles e me pergunto como a falta de inovação no meio universitário afetará o futuro do país.
Muito pertinente essa grave questão na educação. E você deve saber que as mesmas críticas podem ser feitas à educação superior no Brasil e sem risco de exagerar. Talvez não tenhamos uma prática tão difundida e descarada de plágio em meios especializados, mas o que dizer do “método científico” empregado em dezenas de milhares de dissertações acadêmicas todos os anos? O que dizer da capacidade crítica autônoma de boa parte de nossas monografias ou do nível de originalidade das teses defendidas em muitos lugares desse país? Muito infelizmente, estão transformando o ensino superior numa indústria de expedição de títulos em massa e cometendo o erro crasso de auferir isso como índice do progresso educacional.
Boa parte dos professores de universidades públicas que conheço ao se defrontarem com essa obrigação de publicar artigos rotineiramente se limitam a fazer grandes arrazoados de linhas de pesquisas em voga. Mas não há nesses papers, no mais das vezes, nada de diferente do que pode ser lido em outros mlhares de papers por aí. Então é claro que não serão lidos! É mais um trabalho de resenha do que pesquisa de fato. E nem culpo boa parte deles que, em realidade, são ótimos professores.
Vivemos um enfoque na produção por parte das agências de pesquisa completamente enviesado para a colheita de bons resultados. Há poucos anos atrás havia falta de doutores para preencher vagas em muitas universidades públicas, no presente e num futuro que promete agravar-se temos uma competição acirrada entre muitos doutores – nem sempre com a qualidade que era costumeira – para poucas vagas. E sabemos que o apadrinhamento também vigora em grande parte de nossos departamentos em detrimento de uma escolha puramente meritocrática.
O diálogo que você presenciou ou a agressão física que sofreu Fang Zhouzi assim como os relatos e a descrição do horizonte estreito dos imigrantes chineses na América – tema de um artigo anterior seu – costuma proporcionar tanto ou mais esclarecimento do que muitas tabelas estatísticas tão a gosto da propaganda governamental e de suas agências de fomento.