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Vista Chinesa

por Fabiano Maisonnave

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Esqueçam o marxismo: os desafios dos intelectuais chineses

Por Vista Chinesa
24/08/12 13:12

Vice-presidente chinês, Xi Jinping (sentado, segundo à dir.) visita classe de Marxismo Clássico na Universidade Renmin, em Pequim (Divulgação – 19.jun.2012).

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan)

No meu primeiro dia na Universidade de Pequim, em setembro de 1999, o professor Mao Haijian começou a aula repetindo como um papagaio a versão oficial da história chinesa: “Após a Guerra do Ópio (1839-1842), o império chinês se tornou um Estado semifeudal e semicolonial…” Após alguns minutos, ele parou, riu e perguntou a uma sala cheia de alunos que anotavam com afinco tudo que falava: “Para que vocês estão escrevendo isso? Essa versão oficial é um monte de besteira!” Mao então enfatizou a necessidade de refletirmos sobre a história sem nos preocuparmos em seguir a narrativa aprovada pelo governo. A mensagem não poderia ser mais clara: parem de se apegar aos dogmas marxistas e tratem de desenvolver novas interpretações.

A atitude crítica de Mao Haijian à história oficial pode parecer corajosa, principalmente se olharmos para a sua trajetória. Em meados da década de 1990, Mao era um pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais e acabara de lançar o livro “Tianchao de Benkui” (“A queda do Império”). A publicação da obra quase encerrou a sua carreira acadêmica. Nela, tratou de enterrar a visão maniqueísta ditada pelo governo sobre a Guerra do Ópio, na qual a Inglaterra, após derrotar a China, forçou o país a assinar um tratado desigual (bupindeng tiaoyue) que abriria as suas portas ao imperialismo europeu e inauguraria o chamado “Século de Humilhação”. Em vez de retratar os britânicos como vilões, Mao argumentou que os desdobramentos dessa abertura não foram tão ruins assim, pois permitiram à China se integrar ao sistema internacional e, aos poucos, trilhar um caminho para a modernização (jindaihua) de suas instituições político-econômicas.

Essa interpretação não foi bem recebida pelo governo. Mao acabou sendo duramente criticado em reuniões internas do Partido Comunista chinês por ter “problemas de pensamento” (sixiang wenti) e foi obrigado a fazer uma autocrítica para salvar a sua carreira.

Apesar dos esforços do governo em garantir que acadêmicos sigam religiosamente as suas diretrizes ideológicas, professores que criticam abertamente o regime chinês ou o pensamento vigente como Mao Haijian não são raridade no meio universitário. Até mesmo nas disciplinas de ideologia marxista _obrigatórias para todos os universitários_, muitas vezes os professores não perdem a oportunidade de tecer algumas críticas ao sistema político.

“Nem eu nem meus alunos acreditamos no Partido Comunista”, me disse certa vez um professor que ministrava a disciplina Socialismo Científico. “Então, em vez de gastar tempo repetindo teorias idiotas que não servem para absolutamente nada, prefiro ter uma discussão aberta com os meus alunos sobre os problemas do país, principalmente a corrupção existente entre nossos governantes.” Outro professor, que dá aulas de marxismo num instituto de educação física (sim, até atletas chineses são forçados a encarar esse treinamento ideológico), me disse que nos primeiros dez minutos de cada aula passa aos alunos o conteúdo das provas e dedica o restante do tempo a ensiná-los a fazer dinheiro na bolsa de valores.
Para a sorte desses professores, há certa liberdade de expressão nas universidades, contanto que críticas ao sistema político fiquem confinadas às quatro paredes das salas de aula. Talvez seja por isso que, durante os anos que passei na Universidade de Pequim, sempre me senti à vontade para expressar os meus pontos de vista. A maioria dos meus colegas e professores sempre mostrava interesse em ouvir as minhas opiniões, mesmo que discordassem de mim. Além disso, como já assinalei em artigos anteriores, tivemos discussões francas sobre temas considerados sensíveis, entre eles o incidente da Praça da Paz Celestial de 1989, o Tibete e as tensas relações entre a China continental e Taiwan.

O desafio, como Mao Haijian descobriu em meados da década de 90, consistia em encontrar uma forma de difundir ideias e interpretações que não se encaixam nos moldes da narrativa oficial para além das quatro paredes da sala de aula sem causar atritos com o establishment político.

Ao observar como os intelectuais chineses lidam com esse desafio, podemos dividi-los em três grupos. O primeiro é formado por intelectuais que questionam abertamente as correntes de pensamento que sustentam o regime como Mao Haijian, colocando em risco a sua carreira e liberdade. O segundo, composto por professores que priorizam a sua sobrevivência nesse sistema, prega o pensamento vigente. E há um terceiro grupo, que aparentemente segue os dogmas marxistas, mas em suas obras introduzem, de forma sutil, novas interpretações e formas de pensamento.

Eu colocaria a maioria dos intelectuais chineses que conheci nesse terceiro grupo. Gostaria de frisar, entretanto, que se trata de um grupo extremamente heterogêneo, com alguns intelectuais sendo menos sutis em suas críticas do que outros. Para despistar os censores, esses intelectuais em geral redigem a introdução e conclusão de suas obras seguindo a propaganda oficial para dar a impressão que se trata de mais um estudo alinhado com o regime. Em seus capítulos, porém, acabam introduzindo novas ideias, algumas contrárias à ideologia do partido.

Comecei a entender melhor a atuação desses acadêmicos durante um jantar com Qi Qizhang, considerado o maior especialista da Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-95). Eu comentei com ele que havia gostado de ler a sua recente obra “Jiawu Zhanzheng Guoji Guanxi Shi” (História das Relações Internacionais da Primeira Guerra Sino-Japonesa), mas confessei também que havia me sentido um pouco frustrado com a falta de um argumento crítico. Disse que fiquei decepcionado ao ler, em sua introdução, que ele não formularia nenhum argumento, mas apenas apresentaria os fatos para que o leitor tirasse as suas próprias conclusões. Isso era uma pena, pois vários episódios relatados na obra permitiriam que ele desenvolvesse uma nova corrente de pensamento sobre alguns temas.

“Eu não posso fazer isso senão serei acusado de ter ‘problemas de pensamento’ (sixiang wenti),” lamentou Qi Qizhang. “Mas eu posso abrir a porta para que meus leitores possam interpretar a questão de forma diferente e chegar às suas próprias conclusões. Essa é a contribuição que eu posso dar como intelectual que se preocupa em estimular pessoas mais jovens a olharem para os acontecimentos com outro olhar.”

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.
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O punk também não morreu na China

Por Vista Chinesa
23/08/12 11:52

Banda A Boys no Festival Punk de Pequim (Fabiano Maisonnave/Arquivo Pessoal – 18.ago.2012).

Fabiano Maisonnave, de Pequim

Um dia depois da dura sentença contra as russas do Pussy Riot, Pequim calhou de fazer o seu nono festival punk. Nostálgico da adolescência “contra o sistema” (fui baixista da banda nada seminal Mãos Peludas) e curioso para ver os punks chineses, coloquei uma camisa velha do Joy Division e fui para o mosh junto com a patroa.

O palco era a Mao Live House (sim, é possível brincar com o nome do grande timoneiro), no centro da cidade. Tradicional reduto de música alternativa, tem decoração que lembra uma fábrica abandonada e dimensão suficiente para abrigar algumas centenas de pessoas, além de ótimo som.

A primeira banda que vimos foi o Trash Cat (gravei um vídeo, para os mais curiosos). No estilo hardcore, martelava canções próprias como “Fuck V.I.P” e “Shit Country”, entre outras que constavam num CD caseiro vendido do lado de fora por apenas R$ 3 _pena que que não funcionou depois.

Como em qualquer show punk, havia mosh, stage diving, moicanos, camisetas de banda, cerveja e muito mais molecada do que meninas. Na comparação com o Brasil, o ambiente era menos agressivo, a ponto de a cerveja ser tranquilamente vendida em garrafas de vidro. De ruim mesmo, só a fumaça quase insuportável de cigarro.

A mim me pareceu incrível que, mesmo com Pussy Riot nas manchetes, nenhuma das cinco bandas que vi tocar mencionou a condenação. “Eu pensei em falar sobre elas, mas, durante o show, me esqueci”, me contou a baixista do Trash Cat, a única americana do grupo de quatro integrantes.

Por outro lado, não houve hostilidade contra The Erections, banda japonesa que se apresentou no mesmo fim de semana em que dezenas de milhares de chineses saíram às ruas para destruir carros e negócios nipônicos em meio ao acirramento de uma disputa territorial. Pelo contrário, foram muito bem recebidos e até fizeram um pequeno discurso de agradecimento, simultaneamente traduzido por uma moça em trajes mínimos de couro, uma versão punk da Batgirl.

 

A tradutora da banda japonesa The Erections. (Foto: Paula Ramón /Arquivo Pessoal – 18.ago.2012).

De mais político, vimos apenas uma camiseta com Mao dentro de uma caixa que imitava a do McDonald’s ao lado dos dizeres “Big Bro”. “Você pode comprar no Taobao”, disse o rapaz, em referência ao mais popular site de comércio eletrônico chinês.

Ao contrário das russas, o punk chinês, surgido da classe média, não parece disposto a grandes ousadias. Nunca houve nada parecido ao Pussy Riot,  e isso num país que tem dezenas de escritores, jornalistas, professores, ativistas de direitos humanos, um Nobel da Paz e outros críticos do regime atrás das grades ou cumprindo trabalhos forçados.

Quando a banda pequinesa Anarchy Jerks gravou seu primeiro disco, por exemplo, deixou de fora canções mais provocativas que faziam parte de seus shows, como “Nossa liberdade de discurso foi comida pelos cachorros”.

“Não temos liberdade de expressão”, disse o cantor da banda, Shen Yue, numa entrevista. “Então nossa forma de rebelar é não ligar e só fazer o que gostamos de fazer.”

Ousados ou não, os punks de Pequim organizaram uma festa amistosa, divertida e plural, tanto que havia moicanos dançando nas apresentações de duas bandas de ska, formadas por músicos mais mauricinhos.

Que continue assim.

 

A camiseta “Mao Donald’s”.

 

Vocalista do japonês The Erections, de visual mais radical do que os chineses.

 

 

 

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Exportadores de imigrantes ilegais

Por Vista Chinesa
19/08/12 12:49

Parada de imigrantes chineses em Chinatown, Nova York (Larry Downing/Reuters – 25.fev.2007).

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé  (Taiwan)

Há alguns anos, eu estava numa casa de chá em Xuyong, na Província de Sichuan (sudoeste da China), quando uma conversa me chamou a atenção. Cinco senhoras na mesa ao lado falavam com orgulho dos filhos que se encontravam nos EUA. “O meu filho está há mais de dois anos no Texas fazendo dinheiro (zhuanqian),” disse uma. “Tenho dois sobrinhos que estão em Nova York,” disse outra, arrancando olhares de inveja de suas amigas.

Pela conversa e orgulho que essas senhoras demonstravam, parecia que os seus familiares haviam alcançado o seu tão sonhado “American dream”. Mas, ao me interar dos detalhes, descobri que todos esses familiares se encontravam ilegalmente nos EUA. Eles haviam entrado com vistos de turistas para enfrentar uma árdua rotina diária como cozinheiros, operários na construção civil e outros trabalhos braçais. Mas isso não parecia incomodar as senhoras tomando chá naquela tarde em Xuyong. “Graças ao dinheiro que o meu filho me manda, comprei dois apartamentos,” disse uma delas, acrescentando que hoje todos a respeitam. “Antes de meu filho ir aos EUA, eu sempre precisava pedir dinheiro emprestado aos meus familiares e amigas. Hoje são elas que me pedem dinheiro.”

Como muitos pequenos centros urbanos no interior do sul e sudoeste do país, Xuyong se tornou um exportador de imigrantes ilegais. Nessas comunidades, a maioria das pessoas tem um parente ou um conhecido que foi se aventurar como imigrante ilegal nos EUA. “Aqui se mede status social e riqueza pela quantidade de parentes que trabalha ilegalmente no exterior”, me explicou um funcionário do governo. “Somos uma comunidade pobre e, por isso, para melhorar na vida, é necessário ir embora.”

A emigração clandestina de chineses para os EUA começou a ostentar vigor a partir do início da década de 80. Durante as primeiras duas décadas, a maioria dos imigrantes ilegais era proveniente de Fujian, no sul do país. Nesse período, essa Província ganhou fama de exportadora de imigrantes ilegais, a maioria com destino a Nova York. Mas aos poucos essa febre imigratória se espalhou por outras regiões, como Xuyong.

Durante o ápice da imigração chinesa aos EUA, nos anos 90, estima-se que por volta de 50 mil a 100 mil tenham entrado no país ilegalmente por ano, segundo um relatório do Pew Research Center, em Washington. Com o esfriamento da economia após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a crise de 2008, esse número sofreu um declínio para 30 mil por ano.

Essa corrente imigratória é controlada pelo crime organizado na China, em especial na Província de Fujian. Mafiosos (chamados de “snakeheads” (cabeças de cobra) pelas autoridades norte-americanas) cobram entre US$ 40 mil e US$ 60 mil para ajudar os imigrantes a chegarem aos EUA. A rota e forma de entrada variam. Alguns entram com passaportes falsos, outros cruzam a fronteira a partir do México e outros chegam escondidos em contêineres de navios. Alguns conseguem até entrar legalmente com vistos de turista emitidos pela Embaixada Norte-americana em Pequim, obtidos graças à apresentação de documentação falsa.

Segundo reportagem do “New York Times”, nos últimos anos essa rede de tráfico de chineses foi obrigada a agir de forma mais criativa para burlar a fiscalização das autoridades norte-americanas. Com o aumento da vigilância nos portos após os ataques de 11 de setembro, o número de imigrantes que entram escondidos em contêineres passou a diminuir substancialmente. Atualmente, uma das rotas preferenciais é a partir do México. Por isso, nos últimos anos, as autoridades norte-americanas têm observado uma maior cooperação entre os “snakeheads” e contrabandistas mexicanos, disse Vincent Picard, porta-voz do Immigration and Customs Enforcement, em entrevista ao “Times”. Segundo a reportagem, o número de chineses presos ao tentarem a travessia do México para o Estado do Arizona também aumentou consideravelmente, de 30 para 332 entre 2008 e 2009.

Essa onda de imigrantes clandestinos mudou a face de Nova York. Nas últimas três décadas, o mandarim e o dialeto de Fujian substituíram o cantonês como a “língua oficial” do bairro de Chinatown, onde estão concentrados esses imigrantes, a maioria trabalhando em restaurantes ou tecelagens. “Até o início da década de 90, oferecíamos sermões apenas em inglês e cantonês”, me disse o padre Raymond Nobiletti, responsável por uma igreja na Mott Street, em Chinatown. “Há alguns anos percebemos a necessidade de oferecermos também sermões em mandarim. Os chineses passaram a lotar a Igreja.” Nobiletti, que aprendeu o cantonês em Hong Kong, estima que por volta de 800 a 900 chineses, a maioria ilegais, assistam aos sermões em mandarim aos domingos.

Kenneth J. Guest, antropólogo do Baruch College e autor de “God In Chinatown,” estima que por volta de 40% dos imigrantes ilegais chineses se encontrem em Nova York. Mas a preferência por essa metrópole tem resultado num excesso de mão de obra clandestina nos últimos anos. Chineses recém-chegados aos EUA têm encontrado grandes obstáculos para conseguirem trabalho nos restaurantes de Chinatown.

“Quando cheguei aqui, era impossível encontrar trabalho,” disse Lin Qingxian, um chinês que conheci quando eu morava em Nova York. Pressionado pela família, Lin abandonara o seu emprego estável numa agência bancária em Fujian para tentar a sorte nos EUA. Ele entrou no país pela fronteira com o México e seguiu rumo a Nova York. “Morar em Nova York deixaria os meus pais orgulhosos, então resolvi me estabelecer na cidade.” Mas, ao chegar, as únicas ofertas de emprego se encontravam em buffets chineses nos Estados do centro-oeste, como Kansas e Nebraska, lugares que Lin nem sequer sabia que existiam. “Arrumar um emprego num restaurante ou numa fábrica de tecidos aqui é quase impossível para recém-chegados sem experiência e sem fluência na língua,” me disse. Sem dinheiro e devendo cerca de US$ 60 mil a mafiosos de Fujian, Lin seguiu para o Kansas. Após alguns meses em Kansas, ele conseguiu, por meio da ajuda de um amigo, arrumar um emprego na construção civil em Nova York.

A atração dos imigrantes chineses por Nova York não se explica apenas pelos melhores salários. “Trabalhar aqui nessa cidade nos dá a sensação de que vencemos na vida”, disse Lin. Ele também reclamou que se sentia isolado no Kansas, onde há poucos chineses. “Para que serve fazer tanto dinheiro se no lugar onde mora ninguém entende
você?”

Segundo o sociólogo Ko-lin Chin, autor de “Smuggled Chinese: Clandestine Immigration to the United States” (chineses contrabandeados: imigração clandestina para os Estados Unidos), a crescente popularidade de restaurantes chineses no centro-oeste dos EUA tem absorvido o excesso de mão de obra clandestina de Nova York. “Quando um chinês abre um restaurante em Detroit, por exemplo, a primeira coisa que ele faz é ligar para uma agência de empregos em Chinatown,” me explicou.

A maioria dos imigrantes ilegais com os quais conversei em Nova York planejava abrir os seus próprios negócios nos EUA. Mas nem todos estavam tão otimistas quanto ao seu futuro. Um deles, Hong Benzhong, um ex-soldado que chegou aos EUA nos anos 90, se mostrava frustrado com a sua situação e não acreditava que sua vida melhoraria no futuro. “Passei anos cortando verduras e esfregando o chão de cozinhas”, disse, acrescentando que estava cansado dessa vida e também não aguentava mais morar num quarto minúsculo sem janela com outras seis pessoas. Ele esperava, entretanto, que seus esforços permitiriam aos seus filhos subir na vida. “É por isso que continuo trabalhando, para dar aos meus filhos um futuro melhor.”

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras
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A opéra Turandot como metáfora da China

Por Vista Chinesa
17/08/12 08:57

 

Ópera Turandot, de Puccini, no Washington National Opera, em 2007.

Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro

Turandot foi a última obra de Giacomo Puccini e uma de suas melhores. Concluída em 1926, pouco mais de um ano após sua morte, tem algumas versões com finais diferentes em razão dos diferentes compositores que se dispuseram a terminá-la. Alguns aficionados questionam a qualidade do final dessa ópera em relação às partes que o precedem e que foram compostas por Puccini.

Ambientada na China, essa ópera conta a história de uma linda e cruel princesa, Turandot, que odiava os homens e não queria se casar e se entregar a ninguém, traumatizada que estava pela história da princesa Lo-u-Ling, uma de suas ancestrais que teria sido estuprada por um invasor estrangeiro de origem tártara em uma das constantes guerras que envolveram a China nessa época.

O imperador Altum, seu pai, queria um sucessor para a princesa e por isso a pressionou para que aceitasse casar com algum príncipe estrangeiro. Muito a contragosto, Turandot aceitou a pressão de seu pai, mas colocou como condição que o escolhido teria de resolver três enigmas que ela colocaria e somente então seria aceito. Caso seu pretendente falhasse em resolver qualquer dos três enigmas, pagaria com sua própria vida. Três chances para morrer e apenas uma para viver ao lado da linda princesa.

Vejo muitas semelhanças entre Turandot e a própria China, com sua história de constantes guerras e invasões estrangeiras, passagens cruéis e também a grande desconfiança que os estrangeiros despertam nos chineses. Assim como a princesa Lo-u-Ling, estuprada e morta por estrangeiros, a China foi invadida diversas vezes, ocupada pelos mongóis, pelos europeus, pelos ingleses por mais de um século e pelos japoneses, que a vandalizaram por mais de 20 anos.

Assim como Turandot, a China desconfia do estrangeiro e a eles não se entrega. Além de mongóis, ingleses, europeus e japoneses, os chineses não se entregaram aos camaradas soviéticos e mais recentemente aos charmosos norte-americanos.

Se a beleza de Turadot cativava os príncipes que se arriscavam a perder sua vida pela chance de casar-se com ela, a China de ontem e de hoje sempre exerceu forte fascínio sob as outras nações do mundo por razões culturais, sociais, econômicas e geopolíticas. Por isso, as várias invasões e ocupações e tentativas das mais diversas de aliciamento e alinhamento aos interesses dessas nações.

Da mesma forma que Turandot colocou a solução dos três enigmas como condição para que ela aceitasse seu pretendente, a China sempre representou um enigma indecifrável para todos os países que tentaram ocupá-la ou mesmo dela se aproximar. E de alguma maneira a China sempre se livrou de seus invasores e de todos que de uma forma ou de outra tentaram dela tirar proveito. Talvez porque nenhum deles jamais tenha conseguido solucionar o enigma que ela coloca.

Ainda mais recentemente, com o agravamento da crise econômica ocidental, os olhos da comunidade econômica e da imprensa se voltam muito mais para entender o que se passa na China do que para entender e consertar seus próprios problemas.

A intelligentsia ocidental tem se dedicado muito mais a demonizar o que está acontecendo na China, se o modelo chinês está fracassando, se temos um pouso forçado na sua economia ou se estamos vendo o início precoce da sua decadência ao invés de se debruçar sobre seus próprios problemas.

Para um leitor menos avisado, pode parecer que o problema econômico do mundo está na China, e não na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão. A China em crise cresce de 7% a 8% ao ano, enquanto o Ocidente em crise desde 2008 não cresce ou cresce abaixo de 2% ao ano. É o fascínio que Turandot exerce sobre os príncipes da economia ocidental.

Os dois últimos povos a tentar decifrar o enigma chinês que fracassaram foram os soviéticos e os americanos. Os marxistas-leninistas soviéticos, que apoiaram a revolução comunista de Mao Zedong, de certa forma queriam colocar a China na mesma situação tutelar que impuseram a toda Europa Oriental. Mas a China é a China, não se dobra nem se submete. A relação dos chineses com os soviéticos esfriou de tal maneira que acabaram se envolvendo em combates fronteiriços e com as relações econômicas e diplomáticas estremecidas por décadas. Talvez porque os soviéticos foram incapazes de decifrar o enigma da China, assim eu penso.

O esfriamento das relações entre soviéticos e chineses criou a oportunidade para que um novo pretendente se aproximasse, agora os americanos, interessados no fortalecimento da China em relação à União Soviética. Apesar da incompatibilidade entre o sistema politico e econômico americano em relação aos chineses, valeu para ambos o velho princípio de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Turandot e seu novo príncipe pretendente iniciaram uma aproximação que também durou décadas, com vantagens mútuas e muitos interesses não confessos. Mais uma vez, o príncipe não foi capaz de desvendar o enigma de Turandot e a relação entre eles vem se deteriorando ultimamente.

Voltando à ópera, um príncipe desconhecido que na realidade se chamava Calaf e que era filho do imperador tártaro Timur resolveu arriscar sua vida e tentar resolver os três enigmas encantado que estava com a beleza e a determinação da linda princesa. Como sua origem era o mesmo povo tártaro que havia barbarizado a princesa Lo-u-Ling, resolveu esconder sua origem e seu nome, se apresentando como o príncipe desconhecido.

Apresentado aos enigmas, o príncipe desconhecido resolveu os três, colocando a princesa em completo desespero, pedindo ao seu pai que não a entregasse a esse príncipe desconhecido. Este, apaixonado que estava pela princesa, não queria ficar com ela se não fosse pela sua própria vontade. Ofereceu a ela a possibilidade de se libertar de sua promessa de casamento caso ela descobrisse qual era o seu nome. Deu-lhe uma noite para descobrir e revelar seu nome, quando então estaria liberta de sua promessa, e ele, o príncipe desconhecido, condenado a morte.

É nesse momento que o príncipe, tenor, entoa uma das mais belas árias compostas para uma ópera, Nessun Dorma, que significa “que ninguém durma”, ordem dada pela princesa a todos seus súditos até que fosse descoberto o nome desse príncipe desconhecido.

O pai do príncipe desconhecido e sua escrava Liu, apaixonada pelo príncipe e que com ele foram vistos pelos súditos da princesa, foram presos. A escrava Liu, por ordem da cruel e determinada princesa, foi torturada até a morte sem que revelasse o nome do príncipe que tanto amava e que não queria morto.

Para desespero de Turandot, a aurora chega sem que ela descubra o nome do príncipe. Este, emocionado pela tristeza e desespero da princesa vai até ela e revela seu nome condenando a si próprio à morte.

A princesa, também emocionada por tal demonstração de amor, ao invés de mencionar seu nome, se livrar da promessa e condenar o príncipe à morte, prefere dizer que seu nome é Amor.

É uma linda ópera que recomendo a quem não assistiu ou ouviu que o faça. Quem já o fez que faça de novo para relembrar.

Embora italiana, essa ópera tem todo o cenário e a musicalidade oriental e em tudo nos lembra a China, até na natureza simbólica dos seus personagens. Até onde a influência da China sobre a Itália, presente nos achados de Marco Polo e na eventual influência chinesa no período Renascentista italiano, está presente nesta ópera, é uma questão para os especialistas.

O que mais me chamou atenção e me levou a testar com os leitores essa comparação foi a semelhança entre a personagem principal e a própria China e sua história. A enigmática China, ao mesmo tempo misteriosa, bela, cruel e que tanto encanta, surpreende e assusta a todos que com ela se relacionam.

A verdade é que o enigma da China está posto, e todos aqueles que não conseguirem decifrá-lo serão, metaforicamente, devorados por ela como de certa forma o foram os tártaros, os mongóis, os ingleses, europeus, japoneses, russos e americanos.

Não sabemos como decifrar esse enigma, mas por tudo que tenho visto e aprendido com os chineses nesses oito anos que tenho me relacionado com eles talvez a resposta não esteja na dominação, no aliciamento ou numa relação bilateral hegemônica ou de vantagens obtidas em qualquer sentido.

Assim como o príncipe Calaf conquistou a princesa Turandot com sua doação e abnegação amorosa, quem deseja conquistar a amizade da China talvez tenha que fazer algo parecido. Mas, como a história nos mostra, é impossível superar os interesses hegemônicos em uma relação entre nações. Talvez o coração desta donzela chamada China seja, efetivamente, inconquistável! Assim como Puccini não viveu o suficiente para completar sua maravilhosa ópera Turandot, talvez a toda a história da humanidade não seja suficiente para completar a ópera da China, talvez interminável. Na China, o tempo não conta!

José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras. Excepcionalmente, sai nesta terça-feira.

 

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O sistema chinês de conquista de medalhas está perdendo apoio

Por Vista Chinesa
16/08/12 08:08

Campeão olímpico em Atenas, o chinês Liu Xiang beija o último obstáculo da pista após ter tropeçado e se machucado na primeira barreira da corrida de 110 metros, em Londres (Divulgação – 7.ago.2012).

 

Nota do editor: devido ao intenso debate sobre o modelo chinês de preparação olímpica na semana passada, o blog convidou o jornalista esportivo chinês David Yang a escrever um artigo sobre o assunto.

Por David Yang, de Chengdu (sudoeste da China)

Talvez porque Pequim tenha sediado os Jogos há quatro anos, as Olimpíadas de Pequim estiveram no centro do noticiário de quase todos os jornais chineses. As reportagens cobriam desde histórias heróicas até decisões de árbitros controvertidas para atletas chineses. Mas um tópico estava ausente: a discussão do sistema esportivo chinês inspirado no estilo soviético.

O sistema de esportes chinês é popularmente conhecido como ju guo tizhi, ou “o regime esportivo de toda a nação”, pelo qual os atletas são selecionados com pouquíssima idade na maioria dos esportes e colocados para treinar em milhares de escolas de esportes amadoras em todo o país, fundadas pelos cofres públicos. Quando certo nível esportivo é alcançado, os atletas muitas vezes assistem a poucas aulas para ter mais tempo de treinamento. E seus colegas da mesma idade, por sua vez, têm negadas as chances de prática esportiva.

As escolas de esportes são famosas por sua capacidade de ajudar atletas em modalidades que exigem métodos de treinamento repetitivo e são negligenciadas por potenciais atletas ocidentais. Veja-se o levantamento de peso, por exemplo, em que a China colheu cinco ouros e duas pratas nos Jogos Olímpicos. A China agora tem mais de cem bases de treinamento de levantamento de peso, enquanto que em muitos países não é fácil sequer encontrar cem atletas levantadores de peso. Os melhores atletas nessas escolas serão alçados às cerca de 30 equipes provinciais (estaduais) e, em última instância, à equipe nacional.

A ascensão a equipes nacionais a partir de escolas de esportes locais leva de sete a oito anos. E não é de graça. Alguns calcularam que, para ganhar uma medalha de ouro em Atenas-2004, o governo chinês investiu mais de 600 milhões de yuan [R$ 190,6 milhões] com atletas, oito vezes mais do que os Estados Unidos e 37 vezes mais do que o Japão. O sistema era tão controvertido que o Departamento de Propaganda do Partido Comunista da China decidiu escondê-lo de praticamente todo o noticiário esportivo.

“Todo o regime de esporte nacional é utilitarista, e é tão falho quanto o nosso sistema educacional”, escreveu o colunista Lian Peng, em seu microblog. “O governo gasta centenas de milhões de yuan todos os anos com atletas de elite e faz vistas grossas para a cultura do esporte entre os cidadãos.”

Esse post foi retuitado mais de mil vezes na internet por cidadãos cada vez mais conscientes dos gastos governamentais com seus impostos.

Em setembro do ano passado, a revista “Sports Illustrated China” realizou uma pesquisa com 500 chineses em mais de dez cidades sobre sua visão com relação à situação esportiva do país. Desses, 60,4% opinaram que a educação esportiva vem sendo bastante negligenciada, e 21,2% dos entrevistados disseram ser irrealista e mesmo uma extravagância perguntar sobre o tema.

Os líderes autoritários chineses provavelmente querem manter o status quo. Na medida em que a equipe olímpica chinesa fomentar, como tem feito, o orgulho nacional dentro da China, o sistema justifica sua legitimidade e ajuda a manter o país unido.

Muitos chineses estão cansados dessa situação. Quando Li Na, uma tenista que abandonou o regime de treinamento desenhado para ela pelo sistema, se tornou o primeiro asiático a vender um torneio simples do Grand Slam (Aberto da França 2011), Liu Yandong, um membro do Politburo, rapidamente cumprimentou a “camarada” Li via internet. Em reação, internautas expressaram um forte descontentamento por ele ter relacionado a tenista, muitas vezes elogiada por ter rompido com o sistema, com o aparato estatal e a linguagem partidária.

Mas o sistema ficará menos competitivo à medida que os jovens chineses estiverem menos inclinados ao chi ku, (“comer amargo”) em suas práticas esportivas profissionais e quando a economia lhes oferecer melhores oportunidades? Essa tendência ainda não se manifestou, haja vista que a Equipe Chinesa ficou em segundo lugar no quadro de medalhas de Londres.

Ou essa mudança ocorrerá organicamente, quando a classe media urbana e os jovens chineses tiverem mais consciência sobre a importância da prática esportiva?

O skate é um esporte que floresceu organicamente com a introdução da cultura pop depois da política de abertura de Deng Xiaoping. E é um esporte que os líderes esportivos do país ignoram porque não é uma modalidade olímpica.

No dia 28 de julho, um dia depois da abertura dos Jogos Olímpicos, um evento de skate em Xian foi reprimido pela polícia local sob a justificativa de falta de autorização. Dois skatistas foram detidos durante uma noite e só deixaram a prisão depois de pagar uma “penalidade” de 30 mil yuan (R$ 9.530).

“Somos um exemplo vivo do desperdício de dinheiro nos Jogos de Pequim”, comentou Dickid, um elogiado promotor da cultura de rua. “A organização classificou o skatismo de ilegal. O esporte que amamos não tem nenhuma relação com as Olimpíadas”

De fato, eventos de skate e BMX, segundo um organizador, são constantemente interrompidos em quase todas as cidades, pois os governos locais têm medo de que qualquer evento com jovens possa acabar com a harmonia.

A mudança no esporte na China deve realmente ser uma decisão de cima para baixo. Os líderes chineses têm de entender que, ao reformar o regime de inspiração soviética, estarão ao mesmo tempo liberando o potencial de 1,3 bilhão de atletas, capazes de obter mais glórias não apenas para o país como também pelo amor ao esporte e para o seu próprio bem-estar.

David Yang, jornalista, escreve para a Sports Illustrated China e para o blog China Sports Review. 

 

 

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Movendo-se em ondas, empresariado chinês se afasta dos Brics

Por Vista Chinesa
13/08/12 12:24

 

 

Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai

Na China, tem-se frequentemente a impressão de que os diversos segmentos da atividade empresarial privada movem-se em ondas. Para onde vai uma empresa, vão as demais. Há sempre muita competição e muita imitação.

Em outros países, é verdade, os empresários respondem a estímulos gerados pelos mercados ou pelos governos de forma mais ou menos semelhante. Aqui, além da reação comum aos estímulos, há uma tendência irresistível ao comportamento padronizado. É raro encontrar, por exemplo, um grande grupo que não tenha um pé no segmento da construção. É raro ver uma grande empresa investir num determinado país sem que os seus concorrentes o sigam. Basta olhar o mercado de automóveis chineses no Brasil. De repente, tornou-se alvo de um bom número de marcas.

Dá-se, no setor real, o comportamento de manada tão característico do setor financeiro. Como o mercado é gigantesco, quando uma iniciativa empresarial é bem-sucedida, multiplicam-se as empresas que entram nela. Os que entram mais tarde, fazem-no frequentemente sem economicidade. Mas entram assim mesmo. A concorrência pesada e sem critério passa a operar em desfavorecimento de todos. Os mais fracos começam a quebrar. Em seguida, dá-se um esforço de consolidação. Sobrevivem os melhores, não necessariamente os maiores.

Há dias, um banqueiro em Xangai me deu explicações filosóficas para essa realidade. O mundo econômico, chinês, disse-me ele, funciona de acordo com a lógica de Lao Tzu, mestre do taoísmo, segundo o qual tudo no universo está permanentemente sujeito às variações da natureza. As coisas devem acontecer livremente, sem análises profundas. O próprio Lao Tzu nem mesmo escreveu suas ideias para que elas não se transformassem em dogmas.

Em outras palavras, é melhor deixar o empreendedorismo livre, para acertar e para errar. O cenário sempre se acomodará por si só.

Meu interlocutor mencionou que, dada a permanente tendência das empresas a fazer o que outras fazem _ainda que incorrendo em erro_, as instituições financeiras confiam pouco nos números que lhes são trazidos pelos clientes. O seu banco, complementou, busca sempre avaliar a qualidade pessoal dos empresários que o procuram, sua capacidade de sobrevivência quando algo começa a funcionar mal. Suas agências mandam relatórios à matriz descrevendo as características de personalidade dos dirigentes das empresas. Os banqueiros aproximam-se dos dirigentes para conhecer os seus hábitos e relatam naturalmente o que acham, sem qualquer medo de estar violando a privacidade individual. Uma prática ao extremo da norma “conheça o seu cliente”, que é hoje obrigatória nos bancos do mundo inteiro, para levar os gerentes de agências a identificar operações que denotem lavagem de dinheiro.

Digressões à parte e descontados os exageros, há sempre o que observar no comportamento empresarial coletivo.

A propósito, o jornal “China Daily” de 9 de agosto noticiou o resultado de um estudo da Ernest & Young segundo o qual 32% dos empresários chineses acreditam que, nos próximos três anos, as melhores oportunidades de investimento fora da China estarão na Europa. Em seguida, viriam o Oriente Médio e o norte da África, com 29% das preferências, e os Estados Unidos, com 22%.

Há dois ou três anos, quem encontrasse um empresário chinês disposto a investir no exterior ouviria certamente uma profissão de fé nas oportunidades dos Brics. Agora, os Brics estão em baixa, e a Europa, em alta. Segundo a Ernest and Young, investimentos externos em energia e recursos naturais deixaram de representar o alvo dos que procuram oportunidades. Tecnologia, agricultura e propriedade são as escolhas do momento.

Os empresários avaliam que, com o PIB crescendo a taxas mais baixas, as necessidades de alguns recursos primários serão menores. Daí o desinteresse momentâneo relativo pelos Brics.

Ao lado disso, os que numa primeira instância procuraram os Brics e outros países de renda média começaram a entender as dificuldades. Em países como o Brasil e a Argentina, as oportunidades em agricultura se escassearam com as limitações à compra de terras. E as oportunidades em mineração são inviáveis quando as empresas não controlam a logística.

A estratégia agora, no segmento primário, é buscar economias onde há mais liberdade para atuar: África, principalmente. Na boa lógica de Lao Tzu, diria o banqueiro, os empresários vão à cata de locais onde há menos regras.

Mas quem vai ao exterior já está, por princípio, além dos ensinamentos do mestre taoista. Lao Tzu acreditava que as pessoas prefeririam morrer mil vezes a sair de suas casas. Do que se narra de suas reflexões, as pessoas olhariam seus vizinhos e seriam olhados por eles, ouviriam sons maravilhosos da vizinhança, mas nunca se deslocariam até lá.

O empresário chinês moderno pode seguir Lao Tzu em casa. Mas sabe bem que é inevitável se internacionalizar. Aparentemente, por longo período, vai se mover em bandos, atrás da oportunidade do momento. Agora, tudo indica, é a vez da Europa.

Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias. 

 

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O julgamento que mudou a China

Por Vista Chinesa
10/08/12 12:16

Jiang Qing, viúva de Mao e membro do Bando dos Quatro, é escoltada durante audiência judicial, em Pequim, no final de 1980. (Foto: reprodução).

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan)

Nesta quinta-feira (9), o julgamento de Gu Kailai, a esposa do líder político expurgado Bo Xilai acusada do assassinato do britânico Neil Heywood, evocou comparações na mídia estrangeira com outro caso notório: o de Jiang Qing, a poderosa terceira esposa de Mao Zedong, condenada em 1981 por crimes praticados durante a Revolução Cultural (1966-76).

É claro que há pontos em comum entre os julgamentos de Jiang Qing (1914-1991) e Gu Kailai. Ambos eram frutos de disputas políticas na alta cúpula do Partido Comunista chinês (PC) e envolveram mulheres de destaque da elite chinesa. Jiang ganhou notoriedade como líder de uma facção radical do PC que detinha enorme poder durante a Revolução Cultural (1966-1976). Gu, uma advogada famosa, é casada com Bo Xilai, o carismático, mas controverso líder político que estava cotado para se tornar uma das principais lideranças do PC até ser envolvido num escândalo de corrupção e homicídio no início deste ano.

Apesar das comparações entre Jiang Qing e Gu Kailai, não enxergo grandes semelhanças entre os dois casos. O julgamento de Gu durou apenas sete horas e não despertou muito interesse entre chineses, que preferiam direcionar as suas atenções aos Jogos Olímpicos. Em contrapartida, o de Jiang se arrastou por seis semanas e atraiu os holofotes da mídia estatal. Todas as noites, os chineses assistiam atentamente às imagens do julgamento na televisão.

O julgamento de Gu Kailai carece do simbolismo político e social que marcou o de Jiang Qing. Para os chineses, assistir a Jiang desfilar no tribunal de algemas e ser julgada por crimes praticados durante a Revolução Cultural marcou uma transição para um novo capítulo da história do país.

“Quando vi Jiang Qing na televisão, algemada, pela primeira vez em anos senti que a minha vida iria melhorar”, me disse um professor da Universidade de Pequim. “Se ela não tivesse sido condenada, talvez nunca teríamos deixado para trás o radicalismo política do final da era maoísta, e a China certamente não teria se desenvolvido economicamente.”

Não é exagero afirmar que, naquela época, Jiang Qing era a mulher mais odiada do país. Ela personificava todos os excessos ocorridos durante a Revolução Cultural. Um mês após a morte de Mao Zedong, em 1976, Jiang e seus aliados mais próximos foram presos, numa tentativa do novo líder chinês Hua Guofeng de erradicar a facção extremista do PC. Nos meses que se seguiram, o governo orquestrou uma intensa campanha na mídia estatal contra Jiang Qing e os seus colaboradores mais próximos: Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wang Hongwen. Eles passaram a ser rotulados de “Bando dos Quatro” e foram culpados por instigar a violência naquela época. A imprensa chinesa também chegou a publicar as acusações que pesavam contra Jiang e os seus comparsas: a perseguição de 727.420 chineses durante a Revolução Cultural, que resultou na morte de 34.274, entre os quais o então presidente Liu Shaoqi.

O julgamento do Bando dos Quatro se transformou num espetáculo político. Diante de 35 juízes e 880 pessoas que lotaram o tribunal, Jiang atraía os holofotes, frequentemente interrompendo os promotores para rebater as acusações. Em um determinado momento, ela gritava sem parar e teve de ser retirada à força do tribunal. Enquanto seus aliados Yao Wenyuan e Wang Hongwen expressaram arrependimento pelos seus crimes, ela se recusava a admitir qualquer culpa. Em sua defesa, dizia que apenas cumpria ordens: “Eu era o cachorro do Mao. Eu mordia qualquer um que ele me pedia para morder.” Ao término do julgamento, em janeiro de 1981, ela acabou condenada à morte, mas teve a pena comutada em prisão perpétua. Ela cometeu suicídio em 1991.

O desfecho jurídico do julgamento de Jiang já era conhecido mesmo antes de seu início. Segundo o advogado Zhang Sizhi, que na época fora designado para defender Jiang Qing, a sua pena havia sido decidida pela alta cúpula do PC. “[O líder chinês] Deng Xiaoping a queria morta,” disse Zhang recentemente a uma rede de televisão canadense (a facção liderada por Jiang havia sido responsável pelo expurgo de Deng pouco antes da morte de Mao Zedong. Após a prisão do Bando dos Quatro, Deng acabou sendo reabilitado e tomou rédeas do poder em 1978).

Deng Xiaoping e os demais líderes estavam mais interessados no significado do julgamento entre a população do que em seu desfecho jurídico. A campanha contra Jiang na mídia estatal e, principalmente, as cenas do julgamento no noticiário noturno tinham como propósito proporcionar às vítimas da Revolução Cultural uma sensação de que os responsáveis pelos crimes cometidos seriam punidos pela justiça. A liderança do PC pretendia atenuar o trauma coletivo e, ao mesmo tempo, moldar uma narrativa oficial dos acontecimentos daquela época que evitasse manchar a biografia de Mao Zedong. Por este motivo era necessário jogar toda a culpa em Jiang e demais membros do Bando dos Quatro. A Revolução Cultural havia abalado a confiança da população no PC e na ideologia socialista. Para o governo chinês, condenar Jiang e seus aliados seria uma forma de recuperar a sua imagem perante os seus cidadãos.

Por esses motivos, o julgamento de Jiang Qing marcou uma geração de chineses. O caso de Gu Kailai não possui o mesmo peso. Entretanto o seu desfecho irá permitir entender um pouco melhor a atual disputa entre as diversas facções políticas, principalmente num ano de renovação da alta cúpula do PC.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.

 

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Chineses questionam sua "máquina de medalhas"

Por Vista Chinesa
09/08/12 10:39

A levantadora de peso Zhou Jun, 17, em uma das três tentativas frustradas durante os Jogos de Londres; o jornal chinês “Dushi Shibao” a classificou em sua manchete de “o fracasso mais humilhante na história do time nacional de levantamento de peso”, mas recuou e pediu desculpas à atleta após uma avalanche de críticas na internet (Foto: Divulgação/30.jul.2012).

Fabiano Maisonnave, de Pequim

Minutos após receber a medalha do ouro olímpico, o pai da atleta de salto sincronizado Wu Minxia lhe contou que sua mãe está com câncer de mama e que seus avós maternos haviam morrido há mais de um ano. “Aceitamos há muito tempo que ela não nos pertence”, justificou o pai. “Nem sequer ouso pensar em coisas como desfrutar a felicidade familiar.”

Com a medalha de prata no peito, o levantador de peso Wu Jingbiao disse, desconsolado, a um repórter: “Eu desonrei o meu país, eu desonrei o time nacional de levantamento de peso, eu desonrei todos os que se importam comigo”.

Na plateia, quando Li Xueying venceu o levantamento de peso na categoria 58 kg, o seu pai, soluçando, disse que não havia planejado comemoração: “Só quero vê-la imediatamente. Nós não nos encontramos há dois anos! Ela é minha filha, afinal de tudo.”

Treinado na Austrália, o bicampeão olímpico de natação Sun Yang custou aos cofres públicos 10 milhões de yuan (R$ 3,2 milhões) apenas nos últimos dois anos, segundo a imprensa chinesa.

O pai de Lin Qingfeng, outro atleta vencedor do levantamento de peso, disse à imprensa que não reconheceu seu filho de 23 anos na TV _há seis anos, não o encontra. Só percebeu que era ele ao ouvir o nome.

Faltando poucos dias para o final dos Jogos, grande parte dos chineses está certamente orgulhosa pelo desempenho do país, que vem mantendo a liderança no quadro olímpico. Mas, à medida que a competição avança e histórias como as de acima se espalham, muitos vêm questionando se o draconiano e caro sistema esportivo estatal traz benefícios para os atletas e para a população.

O sucesso olímpico chinês é fruto do ambicioso Projeto 119, criado em 2002, cujo nome reflete o número de medalhas de ouro que a China luta para conquistar. Inspirado no modelo soviético, recebe generosos recursos estatais e envolve uma rotina de treinamento excruciante com crianças de até 5 anos.

O esforço fez com que a China ganhasse 51 medalhas de ouro quando competiu em casa, há quatro anos, um número recorde na história das Olimpíadas. Neste ano, tem liderado no quadro de medalhas até agora.

Apesar dos números exitosos, as críticas são várias. Em entrevista à revista “Caixin”, o comentarista esportivo Guan Jun resumiu as principais: 1) o sistema do “tudo ou nada” tira a alegria dos atletas; 2) não há estímulos para esportes de massa e prática esportiva entre a população; 3) o controle estatal tem provocado casos de abuso de poder e corrupção; e 4) o sistema falha nos esportes mais populares, como futebol e nas provas de atletismo.

Nos microblogs, as críticas ao sistema vêm aumentando com o passar dos dias. Muitos dos que enviaram mensagens de apoio ao corredor de 110 metros com barreira Liu Xiang, que na quarta-feira tropeçou e se machucou de forma dramática no primeiro obstáculo, aproveitaram para criticar o programa estatal.

“Com este sistema de esporte nacional opressor, ele apenas tinha uma escolha _ganhar respeito se machucando”, escreveu um blogueiro, citado pelo jornal “New York Times”.

Mesmo na imprensa estatal há criticas. A versão em inglês do jornal “Global Times”, do Partido Comunista, publicou em seu site fotos dramáticas de crianças treinando ginástica, entre as quais algumas publicadas mais abaixo neste post (ATENÇÃO: IMAGENS FORTES).

Temendo uma onda de críticas, a censura chinesa passou a coibir reportagens negativas . Em instrução recente aos meios de comunicação do país, o Departamento de Propaganda determinou que, “ao reportar sobre as Olimpíadas de Londres, não levantem o tema do ‘sistema nacional’ novamente. Com a exceção de comentários na imprensa especializada, não desafie o sistema nem faça especulações sobre ele”.

Vale a pena?

Menina chora enquanto o treinador pisa em suas pernas para estirar os ligamentos em Nanning, região autônoma de Guangxi Zhuang (sudoeste) (Foto: “Global Times”).

 

Técnico estira costas de aluno da Escola de Esportes para Crianças em Jiaxing, Província de Zhejiang (leste).

Equipe de ginástica se aquece numa escola de ensino fundamental de Xangai.

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Vôlei de praia no coração político da China

Por Vista Chinesa
04/08/12 00:14

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan).

Quando Pequim ganhou o direito de sediar as olimpíadas de 2008, os moradores da cidade passaram a comentar a notícia divulgada pela imprensa de que os jogos de vôlei de praia seriam realizados na Praça da Paz Celestial. Ouvi todos os tipos de opinião. Mas a maioria demonstrava certa perplexidade com a ideia de que coração político da China se tornaria o palco de uma disputa de vôlei de praia com mulheres de biquíni.

“A Praça da Paz Celestial é um lugar que nós chineses associamos com as profundas transformações históricas da China, tanto boas quanto ruins,” me disse uma amiga. “Por isto, realizar uma competição esportiva na praça não faz sentido algum. Seria como realizar um concerto de rock numa igreja.”

Para alívio dessa minha amiga, o plano de realizar as partidas de vôlei acabou sendo abandonado logo depois, sem que os organizadores chineses dessem muitas explicações sobre os motivos de sua decisão. Mas a maneira como essa ideia acabou incomodando muitos chineses me levou a refletir sobre o simbolismo da praça e as transformações pelas quais ela tem passado durante as duas últimas décadas.

Desde criança, os chineses aprendem que a Praça da Paz Celestial é o centro do país. E, como frisou a minha amiga, a praça foi palco de eventos e movimentos históricos que mudaram a face da China moderna.

Em 4 de maio de 1919, estudantes da Universidade de Pequim se reuniram na praça para protestar contra o imperialismo europeu, dando origem ao movimento que se espalhariam pelo país e seria responsável, segundo a historiografia oficial chinesa, em criar os alicerces para a fundação do Partido Comunista chinês em 1921. Trinta anos mais tarde, os chineses se reuniram na praça para ouvir Mao Zedong fundar a República Popular da China.

Na década que se seguiu, a praça foi expandida para o seu tamanho atual, um processo marcado por enorme simbolismo político, pois a reforma acarretou na destruição de vários prédios históricos, muitos dos quais abrigava legações de países estrangeiros durante o início dos anos 1900. Para Mao Zedong, aumentar as dimensões da praça significava não apenas criar um símbolo poderoso do novo Estado-nacional chinês, como também varrer os resquícios de um passado humilhante marcado pelo imperialismo europeu. Essa reforma fora concluída em 1959, a tempo para as comemorações do décimo aniversário da revolução.

Os chineses hoje, principalmente àqueles com mais de 30 anos, sempre associaram à praça a um local de manifestações políticas  _tanto coreografadas quanto espontâneas_ e de convívio social. Quando o premiê Zhou En-lai faleceu em 1976, milhares de chineses convergiram na praça de forma espontânea para homenageá-lo. Quando o governo chinês reabriu as universidades após o fim da Revolução Cultural em fins dos anos 70, eram comum observar adolescentes sentados na praça à noite estudando para os exames. E, em 1989, a praça atingiu fama internacional com a repressão dos protestos estudantis pelo governo chinês.
É interessante observar que, a partir dos anos 90, o local aos poucos passou por uma profunda transformação: ela deixou de ser uma praça pública. Até 1989, a praça havia sido um termômetro dos ânimos políticos e sociais da população. Embora fosse um símbolo do Estado chinês, os habitantes da cidade também a consideravam um local de convívio social.

A mudança começou a ocorreu a partir de maio de 1991, quando a Praça da Paz Celestial passou a se tornar o palco de uma cerimônia que vem atraindo um número cada vez maior de turistas chineses e estrangeiros: o hasteamento da bandeira.

Esse evento coreográfico ensaiado nos mínimos detalhes. Sob o olhar atento do retrato de Mao Zedong no Portão da Paz Celestial, uma procissão de soldados carregando a bandeira da China atravessa a avenida da Eterna Paz até chegar ao mastro na praça. Ao som do hino nacional, o hasteamento da bandeira leva exatos 2min7s, cronometrado com precisão suíça para coincidir com o nascer do sol.

Os soldados que participam da cerimônia passam por um treinamento para aprenderem como lidar com os turistas. Eles até aprendem algumas frases em inglês como “please don’t spit on the ground” (Favor não cuspir no chão). Entretanto acho que esses soldados não devem ter muitas oportunidades de praticar o seu inglês com turistas estrangeiros. Já assisti ao hasteamento algumas vezes e geralmente eu sou o único estrangeiro num mar de chineses. A única exceção foi em março de 2005, quando encontrei um empresário norte-americano que estava de passagem pela cidade. Ele disse ter percebido uma certa “religiosidade” entre os chineses presentes na cerimônia que se assemelhava ao sentimento que católicos sentem ao ir à Igreja.

Para um guia turístico chinês com quem conversei, as crescentes levas de turistas chineses interessados em assistir ao hasteamento da bandeira lembram as peregrinações muçulmanas a Mecca. Ele também assinalou que assistir à cerimônia é um símbolo de prestígio entre os chineses, principalmente entre aqueles oriundos de Províncias mais distantes da capital. Mas ele também enxerga essa cerimônia como parte dos esforços do governo chinês em mudar o ambiente da praça.

“Essa cerimônia tem como objetivo cultivar a espírito nacionalista da população,” ele me disse. “Até os anos 90, os habitantes da cidade gostavam de ir à praça para passear, passar a tarde com a família e os amigos, mas hoje você não vê mais isso. A praça hoje é apenas uma atração turística para fortalecer o sentimento nacionalista da população.”

Essa mudança ficou evidente no decorrer da década passada. A presença de policiais e de câmeras de segurança aumentou de forma significativa. A partir dos Jogos Olímpicos de 2008, guardas passaram a revistar as bolsas de turistas nos locais de acesso à praça. “O local hoje parece mais uma fortaleza bem guardada pelo governo do que uma praça onde você vai encontrar os seus amigos,” lamentou o guia turístico. “Não se trata mais de uma praça para o povo, mas sim de um instrumento do Estado para o controle de sua população.”

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.
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Vesti la Giubba*

Por Vista Chinesa
02/08/12 15:32

“O que devo ser: chinês, francês, fuzileiro naval ou um pretensioso de iate clube?”, diz a jaqueta da charge de BlackVelvetFutility (pseudônimo) que ironiza a polêmica sobre os uniformes olímpicos americanos, encomendados à francesa Ralph Lauren e produzidos na China.

Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro

Causou comoção nos Estados Unidos a informação de que os atletas americanos iriam utilizar, durante os Jogos Olímpicos, uniformes Ralph Lauren “made in China”. Congressistas, senadores, industrialistas e formadores de opinião, todos se juntaram para criticar tal fato, tendo o senador Harry Reid, democrata de Nevada e líder da maioria no Senado, declarado: “Eu penso que eles (o comitê olímpico americano) deveriam pegar os uniformes, colocá-los em uma pilha e queimá-los todos e começar de novo”.

Em um artigo na revista “Foreign Policy” intitulado “O futuro da manufatura é na América, e não na China”, Vivek Wadhwa diretor de pesquisa da Universidade Duke, aborda o tema dos uniformes chineses usados pelos atletas americanos vaticinando que o uso da inteligência artificial, da robótica e da manufatura aditiva (3D printing manufacturing) iriam recuperar a indústria americana de tal forma que, em 2020, ocorreriam protestos na China porque os atletas chineses estariam usando uniformes americanos produzidos mais competitivamente pela superior tecnologia americana.

Após a bomba de nêutron que só matava as pessoas e mantinha os ativos intactos, a mais capitalista de todas as armas de destruição em massa, agora os americanos desenvolverão as fábricas sem trabalhadores. Com elas, eliminariam a competitividade da China, segundo eles, baseada em subsídios governamentais, salários baixos, depredação ambiental e moeda artificialmente desvalorizada.

Entre outras observações semelhantes carregadas tanto de xenofobia como de sinofobia, Wadhwa desfila uma série de razões pelas quais os americanos irão recuperar sua hegemonia industrial. Só não explica como esse salto de produtividade, causado por essas novas tecnologias, iria recuperar empregos nos Estados Unidos, a não ser nas fábricas de robôs. O problema, como disse um leitor ao comentar o artigo, é que provavelmente seria mais barato para as empresas americanas produzir esses robôs na China ou em qualquer outro país asiático.

É impressionante que, à medida que a China mantém seu crescimento em meio às dificuldades dos americanos em administrar esta crise que já dura cinco anos, mais eles se parecem com as repúblicas latino-americanas que passaram toda sua história até hoje culpando a América e outros países desenvolvidos pelos seus problemas. Só que, neste caso, os culpados das mazelas americanas são os chineses.

É irônica essa reação dos americanos se considerarmos o papel fundamental que eles tiveram no processo de desenvolvimento econômico da China. Geopoliticamente, os americanos vislumbraram na China mais forte na fronteira com a Rússia uma preocupação a mais para o urso soviético em plena Guerra Fria.

Imagem oficial do uniforme polêmico.

Economicamente, uma China mais aberta e mais capitalista representava uma alternativa para as empresas americanas utilizarem a sua farta mão de obra disciplinada, não sindicalizada e mais barata para enfrentar a competitividade dos japoneses e outros tigres asiáticos com suas marcas próprias.

Investiram seu capital na China, passaram a produzir mais e mais nesse país e abriram o seu mercado para os produtos americanos “made in China”.

O plano era bem intencionado, mas as coisas não saíram exatamente como os americanos planejaram, pois, geopoliticamente, a União Soviética já não mais existe, e os chineses estão mais próximos do que restou dela do que dos próprios americanos. Economicamente, a China se desenvolveu tanto que hoje é vista como uma ameaça à hegemonia americana e causa de tanta preocupação como o artigo de Wadhwa revela.

O que os americanos não dizem é que esse fenômeno é produto do mercado e do processo de acumulação capitalista que os americanos exportaram para a China e estimularam os chineses a adotar em razão de seus próprios interesses geopolíticos e capitalistas.
Com sua capacidade de trabalho, pragmatismo e uma boa ajuda ocidental, os chineses, em pouco mais de 30 anos transformaram uma economia rural, agrícola, de subsistência, pré-capitalista, pré-socialista e pré-histórica em uma moderna economia capitalista urbana, industrial e de mercado.

Saíram dos sinais de fumaça e do pombo correio para a moderna telefonia móvel 3G. Do arado e máquinas tracionadas por animais ou seres humanos para os modernos tratores e máquinas acionadas a energia elétrica. Do uso dos pés, animais e bicicletas como meios de transporte aos automóveis, trens, metrôs e aviões. Dos barcos de junco para os navios. Da tecnologia do bambu para os materiais sintéticos. Do escambo para o cartão de crédito.
Cerca de 1,3 bilhão de chineses, mais do que europeus, norte americanos e japoneses juntos, levaram um décimo do tempo destes para realizar a mesma coisa. Foi a segunda Longa Marcha, agora em passo acelerado e envolvendo não somente as tropas de Mao mas toda a China. Uma nova Revolução Industrial restrita a um país em marcha forçada. Um salto quântico de produtividade que ainda não aterrissou.

E o mundo todo foi beneficiado por esse salto quântico. A inclusão social não foi somente na China mas também nas favelas do Brasil e de toda América Latina , nos guetos e tribos africanas, entre as castas e vilas indianas, nas favelas e nos campos do Sudeste Asiático .
Tudo isso feito pelo pragmatismo do Partido Comunista Chinês apoiado pelo pragmatismo e interesses geopolíticos e econômicos americanos! Os americanos e europeus deveriam se orgulhar de sua obra e dos benefícios que ela trouxe para todo o mundo no melhor exemplo prático da teoria da mão invisível de Adam Smith.

Partindo de um americano, esse artigo é sobre o professor renegando sua própria lição depois de ensinar um aluno aplicado e diligente. Ensinaram aos chineses o seu sistema econômico, deram a eles o capital, a tecnologia e a eles concederam amplo acesso a seus mercados. A maravilha de Deng Xiaoping e da abertura chinesa, de Kissinger à Coca Cola, as vantagens do capitalismo e da economia de mercado sobre o sistema socialista de produção.

Tivessem lido Zhou Enlai ou Deng Xiaoping saberiam das quatro modernizações chinesas, Agricultura, Indústria, Ciência e Tecnologia e “Defesa Nacional”.
Tão preocupados com a diferença do sistema político chinês em relação ao seu sistema democrático ocidental, os americanos poderiam ter, pelo menos, negociado a quinta modernização, democracia à maneira ocidental, esta sim talvez o maior desafio à competitividade chinesa.

Mas não o fizeram, talvez porque achassem que, mantendo o sistema, o capital correria menos risco, e seu retorno seria maior. Os americanos nunca tiveram problemas em conviver com regimes não democráticos se isso atendesse melhor seus interesses econômicos. De Fulgêncio Baptista a Fidel Castro, os americanos se posicionaram diferentemente, mas qual a diferença fundamental entre um e outro? Apenas a forma como um e outro trataram os interesses americanos!

E assim tem sido, na América Latina, no Oriente Médio, na Ásia ou especificamente na China. Qual a diferença entre Mao Zedong e Deng Xiaoping?

Os americanos, por meio dos dos republicanos Nixon e Reagan, seguidos pelo clã Bush e pelo democrata Bill Clinton, criaram um bicho papão, abriram a caixa de pandora e agora será difícil para seus sucessores reverterem esse quadro enquanto a China e a Ásia tiverem a seu favor os ganhos de produtividade estrutural e o crescimento de mercado decorrentes da urbanização.

É a criatura contra o criador! Os americanos e o Ocidente vão precisar de toda a tecnologia e inovação que puderem desenvolver, mas desta vez não terão a mesma vantagem que a Royal Navy, Marinha Real Britânica, teve quando aportou na China há dois séculos.
Os chineses passaram por um treinamento intensivo em capitalismo, economia de mercado e acumulação de capital. A China se modernizou e forma quase um milhão de engenheiros por ano, algumas dezenas de milhares deles em universidades americanas e europeias de ponta. E tem mais gente fazendo pesquisa na China hoje do que em qualquer parte do mundo. E embora muitos de seus novos milionários estejam deixando o seu país para gozar das suas fortunas no exterior, a diáspora chinesa está voltando para casa muito bem preparada pelo sistema capitalista em busca das oportunidades já não tão abundantes no Ocidente.

Alguém disse que Marx era um excelente filósofo, um mau economista e um péssimo profeta. Mas um dos seus mais aplicados seguidores, Lenin, se revelou pelo menos muito melhor profeta ao dizer que “os capitalistas venderão a corda com qual serão enforcados”! E ainda forneceram o capital, a tecnologia e abriram seu mercado para dar escala a seus carrascos!

A forma como os americanos e muitos europeus reagem à ascensão da China é no mínimo hipócrita. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu fiz! Culpar os chineses pelas mesmas coisas que eles fizeram no passado e agora culpá-los também pelas suas próprias mazelas é a mesma reação que sempre criticaram nos latino americanos.

O artigo em questão desse professor universitário americano e a quixotesca reação do Senador Harry Reid aos uniformes Ralph Lauren “made in China” usados pelos seus brilhantes atletas olímpicos nada mais representam do que vestir a carapuça e reconhecer o erro que cometeram ditado pela lógica do mercado e de seu sistema de acumulação, a contradição fundamental do capitalismo tão bem profetizada por Lenin quase um século atrás.

*”Coloque a fantasia”, ária italiana do século 19.
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras. Excepcionalmente, sai nesta terça-feira.
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