Esqueçam o marxismo: os desafios dos intelectuais chineses
24/08/12 13:12Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan)
No meu primeiro dia na Universidade de Pequim, em setembro de 1999, o professor Mao Haijian começou a aula repetindo como um papagaio a versão oficial da história chinesa: “Após a Guerra do Ópio (1839-1842), o império chinês se tornou um Estado semifeudal e semicolonial…” Após alguns minutos, ele parou, riu e perguntou a uma sala cheia de alunos que anotavam com afinco tudo que falava: “Para que vocês estão escrevendo isso? Essa versão oficial é um monte de besteira!” Mao então enfatizou a necessidade de refletirmos sobre a história sem nos preocuparmos em seguir a narrativa aprovada pelo governo. A mensagem não poderia ser mais clara: parem de se apegar aos dogmas marxistas e tratem de desenvolver novas interpretações.
A atitude crítica de Mao Haijian à história oficial pode parecer corajosa, principalmente se olharmos para a sua trajetória. Em meados da década de 1990, Mao era um pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais e acabara de lançar o livro “Tianchao de Benkui” (“A queda do Império”). A publicação da obra quase encerrou a sua carreira acadêmica. Nela, tratou de enterrar a visão maniqueísta ditada pelo governo sobre a Guerra do Ópio, na qual a Inglaterra, após derrotar a China, forçou o país a assinar um tratado desigual (bupindeng tiaoyue) que abriria as suas portas ao imperialismo europeu e inauguraria o chamado “Século de Humilhação”. Em vez de retratar os britânicos como vilões, Mao argumentou que os desdobramentos dessa abertura não foram tão ruins assim, pois permitiram à China se integrar ao sistema internacional e, aos poucos, trilhar um caminho para a modernização (jindaihua) de suas instituições político-econômicas.
Essa interpretação não foi bem recebida pelo governo. Mao acabou sendo duramente criticado em reuniões internas do Partido Comunista chinês por ter “problemas de pensamento” (sixiang wenti) e foi obrigado a fazer uma autocrítica para salvar a sua carreira.
Apesar dos esforços do governo em garantir que acadêmicos sigam religiosamente as suas diretrizes ideológicas, professores que criticam abertamente o regime chinês ou o pensamento vigente como Mao Haijian não são raridade no meio universitário. Até mesmo nas disciplinas de ideologia marxista _obrigatórias para todos os universitários_, muitas vezes os professores não perdem a oportunidade de tecer algumas críticas ao sistema político.
“Nem eu nem meus alunos acreditamos no Partido Comunista”, me disse certa vez um professor que ministrava a disciplina Socialismo Científico. “Então, em vez de gastar tempo repetindo teorias idiotas que não servem para absolutamente nada, prefiro ter uma discussão aberta com os meus alunos sobre os problemas do país, principalmente a corrupção existente entre nossos governantes.” Outro professor, que dá aulas de marxismo num instituto de educação física (sim, até atletas chineses são forçados a encarar esse treinamento ideológico), me disse que nos primeiros dez minutos de cada aula passa aos alunos o conteúdo das provas e dedica o restante do tempo a ensiná-los a fazer dinheiro na bolsa de valores.
Para a sorte desses professores, há certa liberdade de expressão nas universidades, contanto que críticas ao sistema político fiquem confinadas às quatro paredes das salas de aula. Talvez seja por isso que, durante os anos que passei na Universidade de Pequim, sempre me senti à vontade para expressar os meus pontos de vista. A maioria dos meus colegas e professores sempre mostrava interesse em ouvir as minhas opiniões, mesmo que discordassem de mim. Além disso, como já assinalei em artigos anteriores, tivemos discussões francas sobre temas considerados sensíveis, entre eles o incidente da Praça da Paz Celestial de 1989, o Tibete e as tensas relações entre a China continental e Taiwan.
O desafio, como Mao Haijian descobriu em meados da década de 90, consistia em encontrar uma forma de difundir ideias e interpretações que não se encaixam nos moldes da narrativa oficial para além das quatro paredes da sala de aula sem causar atritos com o establishment político.
Ao observar como os intelectuais chineses lidam com esse desafio, podemos dividi-los em três grupos. O primeiro é formado por intelectuais que questionam abertamente as correntes de pensamento que sustentam o regime como Mao Haijian, colocando em risco a sua carreira e liberdade. O segundo, composto por professores que priorizam a sua sobrevivência nesse sistema, prega o pensamento vigente. E há um terceiro grupo, que aparentemente segue os dogmas marxistas, mas em suas obras introduzem, de forma sutil, novas interpretações e formas de pensamento.
Eu colocaria a maioria dos intelectuais chineses que conheci nesse terceiro grupo. Gostaria de frisar, entretanto, que se trata de um grupo extremamente heterogêneo, com alguns intelectuais sendo menos sutis em suas críticas do que outros. Para despistar os censores, esses intelectuais em geral redigem a introdução e conclusão de suas obras seguindo a propaganda oficial para dar a impressão que se trata de mais um estudo alinhado com o regime. Em seus capítulos, porém, acabam introduzindo novas ideias, algumas contrárias à ideologia do partido.
Comecei a entender melhor a atuação desses acadêmicos durante um jantar com Qi Qizhang, considerado o maior especialista da Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-95). Eu comentei com ele que havia gostado de ler a sua recente obra “Jiawu Zhanzheng Guoji Guanxi Shi” (História das Relações Internacionais da Primeira Guerra Sino-Japonesa), mas confessei também que havia me sentido um pouco frustrado com a falta de um argumento crítico. Disse que fiquei decepcionado ao ler, em sua introdução, que ele não formularia nenhum argumento, mas apenas apresentaria os fatos para que o leitor tirasse as suas próprias conclusões. Isso era uma pena, pois vários episódios relatados na obra permitiriam que ele desenvolvesse uma nova corrente de pensamento sobre alguns temas.
“Eu não posso fazer isso senão serei acusado de ter ‘problemas de pensamento’ (sixiang wenti),” lamentou Qi Qizhang. “Mas eu posso abrir a porta para que meus leitores possam interpretar a questão de forma diferente e chegar às suas próprias conclusões. Essa é a contribuição que eu posso dar como intelectual que se preocupa em estimular pessoas mais jovens a olharem para os acontecimentos com outro olhar.”