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Vista Chinesa

por Fabiano Maisonnave

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Do aborto tardio à missão espacial: mulheres expõem contradições da China contemporânea

Por Vista Chinesa
29/06/12 15:22

Na charge do chinês Caranguejo Maluco (nome fictício), uma seringa substitui o foguete . Trata-se de uma alusão ao caso de uma mulher obrigada a abortar por meio de uma injeção letal na mesma época em que a China enviava a sua primeira astronauta ao espaço.

 

Fabiano Maisonnave, de Pequim

(Atenção: imagem forte no final deste post.)

Nas últimas semanas, duas mulheres têm ocupado as manchetes do noticiário chinês por motivos bem diferentes, levando o país a se perguntar como histórias tão díspares coexistem na China contemporânea.

A bela e sorridente Liu Yang ganhou admiração por ter sido a primeira astronauta do país a entrar em órbita. A missão terminou nesta sexta (29), após 13 dias no espaço.

Já Feng Jianmei recebeu a compaixão do país por causa de uma foto em que aparece dividindo uma cama de hospital com um feto morto de sete meses, após ter sido obrigada a abortar por não cumprir a draconiana política do filho único.

A imagem, bastante forte, está no final deste post. Peço desculpas para quem a considerar demasiado gráfica, mas é importante para entender o impacto na opinião pública chinesa.

“Podemos mandar uma mulher astronauta para o espaço e podemos forçar uma camponesa a abortar seu feto de sete meses. Este é o melhor retrato do triste estado deste país _glória e sonhos juntos com humilhação e desespero”, escreveu no weibo (Twitter chinês) um internauta sob o pseudônimo Finja que está em Nova York.

Fen Jianmei, 22, já tem uma filha de seis anos. As autoridades locais cobraram uma multa de R$ 12.800 por ter engravidado pela segunda vez. Como a família não dispunha do valor, ela foi sequestrada em sua casa e levada ao hospital, onde recebeu uma injeção que induziu o aborto (daí a seringa na charge acima).

Depois que a foto provocou uma forte reação contrária do público, o governo chinês fez a sua reação típica: puniu as autoridades da Província de Shaanxi (o aborto só é legal na China até o sexto mês), mas também a família. Fen continua numa espécie de prisão domiciliar dentro do hospital, e o marido fugiu para Pequim após ameaças de supostos moradores da região, que os acusam de manchar a imagem do país.

Mas é justo registrar que, desta vez, a imprensa estatal chinesa deu bastante destaque à história, e em tom crítico.

Já a aterrissagem da piloto da Força Aérea chinesa Liu Yang, 33, e de seus dois companheiros foi acompanhada por milhões de telespectadores chineses nesta sexta.

Para viajar ao espaço Liu, tratada como heroína pela imprensa oficial, cumpriu vários requisitos que se parecem mais aos de um concurso de beleza do que de astronauta: teve de demonstrar que tinha pele e dentes perfeitos, além de ausência de mau hálito.

A astronauta Liu Yang deixa a cápsula que lhe trouxe de volta à Terra.

 

A foto de Feng Jianmei ao lado do feto morto. Imagem provocou indignação na China e no mundo.

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A romaria dos governos estaduais à China

Por Vista Chinesa
28/06/12 10:27

O governador de MT, Silval Barbosa, apresenta projeto ferroviário em Pequim (Divulgação - 26.jun.2012).

Fabiano Maisonnave, de Pequim

Está cada vez mais frequente a visita de comitivas de Estados brasileiros à China em busca de investimentos. Nesta semana, Silval Barbosa (MT) foi o último de uma fila que, somente no primeiro semestre deste ano, incluiu Eduardo Campos (PE) e os vice-governadores do Pará e do Rio Grande do Sul.

As conversas envolvem projetos em áreas tão diversas como são diferentes os Estados. Com Pernambuco, o ponto alto foi um acordo preliminar para uma fábrica de caminhões, o mesmo objetivo do Rio Grande do Sul, que também quer dinheiro chinês para reformas portuárias. Já o Pará tenta atrair empresas de siderurgia e energia limpa.

No caso de Mato Grosso, o governador Barbosa, em conversa nesta quarta-feira (27), disse que os assuntos envolveram agronegócio, mineração e até turismo. É a sua segunda viagem ao país em pouco mais de um ano.

As negociações mais adiantadas se referem ao financiamento chinês de US$ 10 bilhões para uma ferrovia entre Cuiabá e Santarém (PA), que seria usada principalmente para escoar soja.

A logística tem sido um dos principais gargalos para a produção agrícola do Mato Grosso. O que não impede que China seja o maior parceiro comercial do Estado: quase 50% de sua soja exportada vem parar aqui.

Barbosa diz que são os chineses que vêm tomando a iniciativa. “[O contato] é mais por parte deles, os chineses estão avançando no mundo. Eles procuram. E não é uma missão só, não. Eu já recebi várias missões, de empresas diferentes. Eles estão prospectando negócios com muito apetite.”

O primeiro pé chinês em Mato Grosso será da gigante de energia State Grid. Recentemente, ganhou um leilão, em consórcio com a brasileira Copel, para implantar uma rede de transmissão entre Apiacás e o Estado vizinho de Goiás, um projeto de US$ 1,2 bilhão. As obras devem começar em breve, afirma o governador.

Por outro lado, o que mais barra o ímpeto chinês, diz Barbosa, é a dificuldade para entender a morosidade do sistema brasileiro. “A questão que eles falam sempre é a dificuldade da nossa legislação em relação a licenças ambientais, essas coisas. Aqui, você quer construir uma estrada, é rápido demais.”

Burocrático ou não, o fato é que o interesse chinês pelo Brasil ganhou um novo impulso nos últimos meses, com a avaliação de que seus principais parceiros econômicos (EUA, Europa e Japão) continuarão estagnados ainda por um bom tempo, com reflexos também no comércio.

Nos serviços consulares brasileiros na China, cresceu o número de solicitações em empresas chinesas interessadas em exibir produtos em feiras setoriais.

Essa aceleração comercial fica evidente nos dados da balança comercial chinesa, que mostram a crescente importância brasileira (e de outros países emergentes) para sua máquina exportadora.

As vendas para o Brasil cresceram 13,3% nos primeiros quatro meses deste ano, em comparação a 2011, segundo números oficiais chineses. Quase tudo, como se sabe, são produtos manufaturados.

Em contrapartida, as exportações para a União Europeia, maior parceiro comercial chinês, caíram 0,8% nos primeiros cinco meses em relação a 2011.

Com a crise atingindo com mais força o mundo rico e a intensificação dos contatos, o avanço chinês no Brasil tende a se acelerar e a se diversificar, abrindo a possibilidade de mais financiamentos para a infraestrutura, mas aumentando o desafio para a indústria nacional. Cabe ao país potencializar as oportunidades e minimizar os riscos.

 

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O passado chinês não é mais como era antigamente

Por Vista Chinesa
25/06/12 17:17

Trabalhador instala lâmpada na nova praça central "histórica" de Datong, norte da China (Fotos: Fabiano Maisonnave - 24.jun.2012).

Fabiano Maisonnave, de Datong (Província de Shanxi)

O cardápio do restaurante Feeling, no centro de Datong, afirma que o local é tão antigo quanto o Brasil: funciona de forma ininterrupta “há cerca de 500 anos”, aperfeiçoando as receitas mais tradicionais desta milenar cidade do norte chinês.

Mas o nome Feeling não aparece em nenhum dos três guias de turismo que  consultei. E um pintor de paredes montado sobre andaimes  do lado de fora mais o cheiro de novo no interior revelam que a idade do local deve ser contada em meses, e não séculos.

Decorado ao estilo “tradicional chique”, o restaurante ocupa uma das centenas de construções recém-erguidas ou em obras no centro. Daqui a pouco, toda a vizinhança será assim: prédios “históricos” inaugurados ontem.

Mesmo sob chuva, pintor trabalha no telhado do restaurante Feeling. Ao fundo, prédios em construção.

Por trás disso, está a ideia de diversificar a economia de Datong, que hoje gira em torno de suas imensas reservas de carvão, a principal fonte de energia da China.

A chamada Capital do Carvão tem vocação turística até há pouco deixada em segundo plano. A 15 km do casco urbano, estão as impressionantes cavernas de Yungang, que abrigam cerca de 51 mil esculturas de 2.500 anos, incluindo um Buda de 17 metros.

Outro passeio imperdível é o Monastério Suspenso, encravado no meio de uma montanha por volta do ano 491.

Com muito dinheiro  em mãos vindo do carvão, o governo local decidiu incentivar o turismo remodelando o centro da cidade, ocupado por comércio popular e por labirintos de hutongs, a versão chinesa dos cortiços.

A ideia, porém, não é fazer algo como o Pelourinho baiano: não se trata de restaurar, e sim de passar o trator em quase tudo e erguer uma nova cidade com prédios “históricos” inspirados na dinastia Ming (1368-1644).

A invenção do passado, como já ensinou o historiador Eric Hobsbawm, está longe de ser uma novidade, e sobram exemplos pela China. Mas eu nunca havia visto na escala que está sendo feita nesta cidade de 1,2 milhão de habitantes.

O transformado templo Huayan, separado por um muro de hutongs semidemolidos, mas ainda habitados.

Apenas em 2009, foram demolidos 820 mil metros quadrados, o equivalente 22,8 mil casas do projeto Minha Casa, Minha Vida.

E falta muito para derrubar. Nos hutongs, áreas já tombadas convivem com casebres ainda habitados, num cenário que lembra uma cidade arrasada por um terremoto.

Ao mesmo tempo em que tudo vai ao chão, já há quadras e quadras de prédios impecáveis, numa mistura de história com fantasia.

Caminhar por ali é como estar num cenário de filmes como o “O Tigre e o Dragão”_não me surpreenderia se um lutador de kung fu aparecesse saltando de telhado em telhado.

Nem mesmo os poucos prédios realmente históricos da região foram poupados da sanha revisionista. Aos dois salões do século 12 do templo Huayan foram acrescentadas pelo menos outras oito construções “antigas”.

Agora, esculturas de 800 anos convivem lado a lado com outras recém-saidas do talho, sem nenhuma explicação para que se distinga uma da outra.

Tudo está sendo cercado por uma enorme muralha nova de 12 metros de altura e 12 km de extensão. No passado, uma fortificação semelhante protegia o centro, mas foi destruída tanto na iconoclasta era Mao quanto na febre de construção dos anos 1990.

Custo oficial da repaginação: US$ 7,4 bilhões, ou 17 reformas do Maracanã.

E há o preço social: milhares de famílias foram desalojadas e levadas para a periferia. Em maio do ano passado, protestos deixaram cerca de 40 pessoas feridas e levou a cidade a decretar toque de recolher.

Idealizador do projeto, o prefeito de Datong, Geng Yaobo, admitiu em abril que “ninguém quer se mudar. Mas pedaços da herança cultural estão desaparecendo numa velocidade que mal nos dá tempo para esperar. Tivemos de agir.”

Ele estima pagar toda a extravagância com a eventual chegada em massa de turistas a partir de Pequim. Até o fim do ano, um trem-bala reduzirá a viagem até a capital das atuais seis horas para pouco mais de uma hora.

Por conta da remodelação, os ingressos já ficaram mais caros: para visitar Yungang, por exemplo, desembolsei 150 yuan (R$ 49). Quatro anos atrás, quando o megaprojeto começou, o preço era apenas 40 yuan (R$ 13).

É muito mais do que os 60 yuan (R$ 19,50) cobrados na Cidade Proibida. E o valor ficou alto demais para a população mais pobre da Província de Shanxi, onde o salário mínimo oficial é de apenas 790 yuan (R$ 256).

Geng disse que cerca de 3 milhões de turistas visitarão a cidade nos próximos anos. É bem provável, mas não sei como o frágil Templo Suspenso, mantido a 75 metros da base da montanha por vigas de carvalho, suportará tanta gente. Que a solução não seja substituir a madeira por concreto armado pintado de marrom.

Monastério Suspenso, a cerca de 70 km de Datong (Foto: Patrick Streule/Divulgação - 16.ago.2009).

 

 

Trecho da muralha de Datong em construção.

 

Trecho já concluído da nova muralha.

Datong em várias formas: novos prédios históricos, hutongs, edifícios mais modernos e o guindaste.

 

 

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O colonialismo inglês, a CIA e o tráfico de drogas no sudoeste chinês

Por Vista Chinesa
22/06/12 14:49

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan)

Há duas semanas, a agência de notícias chinesa Xinhua publicou um artigo sobre a prisão de três traficantes e o confisco de aproximadamente 10 kg de drogas na fronteira da Província de Yunnan, no sudoeste do país, com Mianmar (ex-Birmânia). Notícias como essa não são novidade. Aliás, tais incidentes ocorrem com certa frequência nessa região montanhosa, coberta por densas florestas e habitada por uma diversidade de minorias étnicas. Há décadas, a fronteira entre a China e Mianmar serve como a principal porta de entrada para ópio, heroína e outras drogas no país. Trata-se, na verdade, de uma herança do colonialismo inglês e do combate da CIA ao comunismo na Ásia.

As dores de cabeça que essa região fronteiriça têm provocado nas autoridades chineses não são recentes. Desde os tempos imperiais, a geografia montanhosa, a malária e a força militar das tribos locais frustraram os esforços dos imperadores das dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912) em estabelecer seu controle sobre a região, rica em pedras preciosas, madeira e minérios. Para ter acesso a esses recursos naturais e às rotas de comércio entre o império chinês e o Sudeste Asiático, as cortes Ming e Qing se viram forçadas a estabelecer alianças frágeis com os líderes das tribos locais que mandavam na região. Certas tribos cultivavam uma reputação que causava terror, entre elas a etnia wa, cujos membros eram conhecidos como “caçadores de cabeças” pelo hábito de utilizarem cabeças decapitadas em rituais.

Nem mesmo os ingleses, que incorporaram Mianmar (na época conhecida como Birmânia) ao seu império no final do século 19, conseguiram domesticar as tribos com suas incursões militares nas áreas fronteiriças com Yunnan. A partir da década de 1890, a resistência dos líderes tribais à entrada de expedições formadas por autoridades chinesas e britânicas em suas área de controle ocasionaram o fracasso das várias tentativas entre os governos de Londres e Pequim em demarcar a fronteira entre a Birmânia e a China. Não é por acaso que, até meados dos anos 1930, mapas dessa fronteira ainda continham vários espaços em branco.

A chegada dos ingleses, porém, transformou a região, tornando o tráfico de drogas num comércio rentável para as tribos locais. Os wa passaram de “caçadores de cabeças” a produtores de ópio, abastecendo o Sudeste Asiático e a China. Em meados da década de 30, o líder chinês Chiang Kai-shek passou a acusar os britânicos de se aliarem às tribos locais e se aproveitarem da porosidade da fronteira para cultivar e contrabandear o ópio, além de armas e outros produtos. Esse comércio rentável não ficou restrito apenas à fronteira de Yunnan, se alastrando por outras áreas do sudoeste chinês habitadas por etnias como yi e miao, principalmente nas Províncias de Guizhou e Sichuan. Não é exagero afirmar que, naquela época, a organização política, econômica e social dos povos étnicos no sudoeste passou a gravitar em torno da produção e comércio de ópio. Até o Partido Comunista chinês (PC) se beneficiou dessa atividade econômica ilícita na década de 40 para conseguir financiar suas campanhas militares e derrotar o exército de Chiang Kai-shek.

Com a ascensão de Mao Zedong ao poder, em 1949, porém, o governo chinês começou a promover campanhas de erradicação do ópio no país, principalmente na província de Yunnan. Além de querer livrar a China da dependência das drogas (que o PC enxergava como o fator responsável pela capitulação do império Qing às potências européias no século 19), essas iniciativas também refletiam uma estratégia política. Cortar pela raiz a principal atividade econômica das tribos no sudoeste facilitaria os esforços de Pequim em estabelecer seu poderio militar e instalar instituições administrativas na região.

Todavia, do outro lado da fronteira de Yunnan, no norte de Mianmar, o comércio de drogas adentrava uma época áurea, em parte graças à estratégia da CIA de combate ao comunismo no início dos anos 50.

Após a derrota para os comunistas, alguns batalhões do exército nacionalista de Chiang Kai-shek se refugiaram na região fronteiriça entre Yunnan e Mianmar, na esperança de reconquistar a China a partir de Yunnan. Essas tropas formaram alianças com as tribos locais e financiavam as suas atividades por meio do tráfico de drogas. Segundo o historiador Alfred McCoy, da Universidade de Wisconsin-Madison, a CIA providenciou aeronaves da Air America, uma de suas empresas de fachada, para transportar o ópio produzido em áreas na fronteira sob o controle das tropas leais a Chiang Kai-shek para o restante do Sudeste Asiático. Generais nacionalistas que na época contavam com o auxílio da CIA eventualmente acabaram abandonando a tarefa de reconquistar a China para se tornarem os chefes do tráfico na região, transformando Mianmar no segundo maior produtor de ópio e heroína do planeta. Por ironia do destino, no final dos anos 60, esses barões do tráfico passaram a abastecer heroína aos soldados norte-americanos no Vietnã.

A China conseguiu permanecer imune à expansão do tráfico na região durante um breve período, em parte graças à proibição do comércio na fronteira com Yunnan pela junta militar de Mianmar a partir de 1962. Todavia a assinatura do acordo de comércio entre ambos os países em agosto de 1988 abriu novamente as portas da fronteira aos traficantes.

Segundo a Xinhua, no ano passado a polícia em Yunnan apreendeu 13,5 toneladas de narcóticos, o maior confisco de drogas já registrado na Província, e prendeu 17 mil pessoas acusadas de tráficos. Mas isso não significa que o governo chinês esteja vencendo a guerra. As autoridades chinesas admitem que o tráfico em Yunnan continua em curva ascendente. E, segundo a Xinhua, a área para o cultivo de ópio em Mianmar também aumentou, de 31.700 hectares, em 2011, para 44.866 neste ano.

A China também teme que os esforços recentes do governo de Mianmar para colocar um ponto final nos conflitos étnicos no norte do país sirva para exacerbar o tráfico das drogas na fronteira com Yunnan. Segundo o Mizzimi News, nos últimos anos soldados do Exército, insatisfeitos com seus baixos salários, passaram a auxiliar grupos armados pró-independência que atuam no comércio de narcóticos. Nesse sentido, acordos de cessar-fogo permitiriam a esses militares ampliar a sua participação nas operações logísticas do tráfico.

O cessar-fogo com o United Wa State Army (Exército Unido do Estado Wa) é exemplar para ilustrar essa preocupação dos chineses. O acordo permitiu que os rebeldes expandissem os seus negócios nesse ramo, ao passar a contar com a participação de militares. Não é coincidência que um dos seus líderes, Wei Hsueh-kang, natural de Yunnan, se encontre na lista dos traficantes mais procurados pelos EUA. Sua atuação como um dos criminosos mais poderosos do Sudeste Asiático permitiu que ele diversificasse os seus negócios, atuando nos ramos de extração de jade, comunicações e construção civil. Uma reportagem no jornal italiano “La Stampa” o descreveu como “um traficante de drogas, um respeitado homem de negócios na China e chefe de um Exército de independência em Mianmar”.

A China ainda não conseguiu elaborar uma estratégia concreta para o combate às drogas. Seus esforços continuam dispersos. O governo ora constrói muros na fronteira para coibir a ação de traficantes ora aumenta o seu aparato policial em Yunnan. Parece que ainda levará tempo para que os chineses aprendam a lidar com o aumento do tráfico no país.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.

 

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O mundo mudou entre a China de Mao e a de Hu, e o rei está nu

Por Vista Chinesa
21/06/12 03:50


Na charge do caricaturista Harry Harrison, o panda chinês diz: "Sua vez".

  Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro

O impasse verificado no desenvolvimento da conferência Rio+20, muito mais do que consolidar as divergências entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos sobre as questões ambientais e de desenvolvimento sustentado, expõe com clareza as divergências sobre o modelo de desenvolvimento econômico e social moderno e as possibilidades do nosso planeta em mantê-lo nos primeiros países e estendê-lo aos segundos.

O crescimento demográfico aliado aos fenômenos de urbanização, industrialização e disseminação dos padrões de consumo das nações mais desenvolvidas em direção às nações menos desenvolvidas tem exacerbado o conflito redistributivo em nível mundial. A globalização da economia e a monopolização dos mecanismos de mercado como forma de alocação de recursos e decisão sobre o que produzir e consumir expõe as enormes contradições abrigadas dentro do sistema via os impactos ambientais e o preço das “commodities” agrícolas e minerais, aí incluso o petróleo.

Acredito que a crise do endividamento das pessoas nos Estados Unidos e dos países na Europa seja parte integrante dessas contradições e expõe com bastante nitidez as dificuldades em compatibilizar o enunciado que colocamos em nosso primeiro parágrafo: manter o nível de vida das nações mais ricas e estendê-lo as nações mais pobres. Em outras palavras, tornar as nações mais pobres mais ricas dentro do mesmo padrão de consumo!
Nesse sentido, é bastante sintomático que as mesmas nações que se reúnem para discutir a crise econômica mundial no México dentro do G20 sejam as mesmas que se digladiam na discussão dos temas de sustentabilidade na conferência Rio+20.

Nesse cenário descrito acima, a China personifica aos abastados olhos norte-ocidentais tudo aquilo que deve ser evitado, um crescimento acelerado de uma nação pobre baseado em modelos de consumo ocidentalizados.

Quando Mao Tsé-tung morreu, em 1976, a China era um país rural de 1 bilhão de habitantes, pobre, quase paupérrimo, com 85% de sua população vivendo no campo numa economia de subsistência, com uma parca dieta vegetal, sem meios de transporte além de pernas, bicicletas e de seus animais.

A maior fonte de energia disponível era primária, tirada deles próprios ou da natureza sem nenhuma sofisticação industrial. A infraestrutura de energia e transporte era quase inexistente para o tamanho de sua população, e os padrões de consumo, tão frugais que seria impossível a um ocidental imaginar como eles podiam viver daquela maneira. O sonho de consumo de um chinês era um rádio e uma bicicleta, e a moda, ano após ano, eram os indefectíveis terninhos tipo Mao, com o mesmo design e cores, distribuídas duas ou três peças por habitante. Tudo era racionado, da comida ao sabonete. Os níveis de consumo da China, principalmente de alimentos, beiravam o limite da sobrevivência, daí a grande criatividade dos chineses nos ingredientes de sua culinária, principalmente no que tange a proteína animal.

O impacto da China no mercado mundial de commodities agrícolas, minerais e energia era zero, assim como seu impacto no mercado de bens industrializados. Embora já dispusesse de um razoável poderio militar e inclusive detentora de bombas nucleares, do ponto de vista do impacto econômico no mundo e pressão sobre recursos naturais e emissão de poluentes, tudo se passava como se a China e suas centenas de milhões de habitantes não existissem! Era um enorme ponto no mapa mundial despertando mais curiosidade do que qualquer preocupação. A China de Mao, em 1976, não era muito diferente da China vista por Marco Polo ao final do século 13 ou por Lorde MacCartney ao final do século 18. A China era um imenso país igualitário, vivendo na pobreza absoluta.

Em 2012, apenas 36 anos depois, a China de Hu Jintao, em termos mundiais, é a segunda maior economia, a primeira nação industrial e maior exportador de bens industriais. O país é hoje o maior produtor e consumidor mundial de aço, alumínio, cimento, automóveis, eletrodomésticos, computadores, roupas, sapatos, para nomear alguns itens. Maior consumidor mundial de alimentos, energia e commodities minerais. Nesse curto espaço de tempo, a China deixou de ser uma bucólica nação agrícola e rural para se tornar uma nação industrializada, quase urbana com mais de 50% de sua população vivendo nas cidades.

De uma modorrenta economia de subsistência, se transformou numa pujante economia de mercado. Uma nação praticamente sem infraestrutura se transformou no maior produtor mundial de energia, com uma extensa rede de estradas de rodagens, ferrovias, dezenas de portos e aeroporto, uma infraestrutura de colocar inveja em qualquer nação do primeiro mundo! Suas imensas cidades costeiras contadas às dezenas rivalizam com as mais modernas cidades do Ocidente em termos de padrão arquitetônico e modernidade.

Como decorrência da generalização dos padrões de consumo ocidentais, a China é hoje uma das nações que mais polui e que mais emite carbono na atmosfera terrestre. A China é também a nação que mais investe em energia renovável e uma nação que neste momento de grandes questionamentos a nível mundial realiza façanhas espaciais dignas dos Estados Unidos e União Soviética de outros tempos. Do ponto de vista social e econômico, a China de Hu Jintao é tudo que a China de Mao não era!

Com mais de 1,3 bilhão de habitantes e todo esse crescimento alicerçado no modelo econômico, social e hábitos de consumo ocidentais, a China é a demonstração prática da imensa contradição que se abriga no nosso sistema de vida. Os padrões ocidentais de desenvolvimento econômico e social não são compatíveis com sua universalização no nível atual de avanço tecnológico. O exemplo chinês, que ainda não atingiu nem de longe os padrões de vida e de consumo das nações ocidentais, é uma clara demonstração disso.

Nossa civilização ocidental desenvolveu um modelo econômico baseado na abundância relativa, isto é, os recursos do mundo são para todos e devem ser comercializados livremente pelas forças de mercado, mas os padrões de vida e consumo, não. Assim caberá a algumas nações e povos trabalharem mais e fornecerem os recursos. E a outras consumirem. Umas viverão na abundância e outras na penúria! Parafraseando Clausewitz, que dizia que “a guerra é continuação da política sob outros meios”, atrevo a dizer que “a globalização dentro da visão ocidental é a continuação do colonialismo e da escravidão sob outras formas”.

Depois de séculos de exploração colonial, a pregação pela abertura comercial e dos benefícios da economia de mercado, propagados à exaustão pelas nações abastadas do centro como modelo a ser seguido pelas nações pobres da periferia, parece não estar resistindo a seu grande teste que é o crescimento chinês. Imaginem se os demais 4,7 bilhões da população mundial seguirem o mesmo caminho da China! O crescimento acelerado da China era tudo que as nações ocidentais não sabiam que não queriam!

Um dos grandes méritos do crescimento chinês foi desmascarar o rei. Ele está nu como nunca esteve. A China fez isso usando os mesmos mecanismos de mercado e de acumulação usados pelas nações ocidentais que cresceram e elevaram seu padrão de vida por séculos, baseado no interesse nacional de cada país, de forma consciente ou inconsciente ou simplesmente pela ordem orgânica da reprodução capitalista. A China demonstra cabalmente a contradição fundamental do sistema capitalista e da nossa forma de vida, uma grande e apetitosa cenoura que nem todos podem comer, mas que continua nos levando na mesma direção.

O que vemos na Rio+20 e no G20 é verso e reverso da mesma moeda. O crescimento chinês está ocupando um espaço que era ocupado pelas nações desenvolvidas na expansão de seu bem-estar social. O crescimento da China alterou definitivamente o padrão das trocas internacionais, a grande fonte de crescimento da produtividade das nações industrializadas juntamente com o domínio da inovação tecnológica. Como forças políticas dominantes nessas nações ditas democráticas estão sujeitas ao sufrágio para se manter no poder, era natural a pressão para manutenção do status quo. Na falta de ganho nas trocas internacionais e nos avanços tecnológicos que permitissem o crescimento da produtividade e por consequência a evolução sustentada dos padrões de vida e de consumo, as nações e pessoas do ocidente usaram o mecanismo de que dispunham para manter ou mesmo elevar esse padrão, ou seja, o crédito.

Nos últimos dez anos que antecederam a crise de endividamento de 2008, as nações ocidentais progrediram e ampliaram seu padrão de vida e de consumo não somente com base em ganhos nas trocas internacionais e avanços tecnológicos, como vinha sendo o padrão desde o início da Revolução Industrial. A melhoria de vida e aumento do consumo foi baseada em grande parte no crédito fácil, até que fosse atingido o limite do endividamento.

Para essa festa creditícia que hipertrofiou o sistema financeiro alavancando perigosamente o PIB mundial, ajudou o forte crescimento da liquidez internacional e o apetite e a criatividade dos bancos para correrem riscos inaceitáveis e realocar essa enorme liquidez decorrente criação da União Europeia e da incorporação dos países comunistas de economias centralizadas à economia de mercado. Antiga União Soviética, os países do Leste Europeu, inclusive a Alemanha Oriental, e principalmente a China foram incorporados na economia de mercado e na economia ocidental provocando forte crescimento de produtividade e da liquidez em nível mundial, permitindo essa festa de endividamento proporcionada pela extrema criatividade e apetite por riscos do sistema financeiro internacional.

Forçosamente temos de mencionar a política de desregulamentação criminosa e relaxamento dos controles financeiros proporcionados pelas autoridades econômicas dos países ocidentais, quase sempre decorrentes do interesse político de se manter no poder proporcionando aos seus eleitores uma falsa impressão de abundância e desenvolvimento por meio do crédito farto e barato. Os Estados Unidos da América têm posição central nesse fenômeno monetário!

Um bom exemplo desse período é um discurso que vi um dia desses na televisão do então presidente George Bush falando antes da crise das hipotecas nos Estados Unidos, enaltecendo as virtudes da desregulamentação e o acesso a crédito, que permitia a um garçom (bartender, na sua expressão) comprar uma bela casa financiada a perder de vista e depois levantar mais crédito em cima da mesma casa para comprar outras coisas.

O crédito tem na economia o mesmo efeito da droga, pois permite consumir sem o ônus momentâneo da produção. O prazer que o consumo nos dá é equivalente às penas pelo qual passamos para poder pagar por ele. Abdicamos do ócio, abdicamos do lazer, do tempo com nossos familiares para trabalhar e poder consumir depois! Com o crédito, num primeiro momento só temos o prazer do consumo e postergamos as penas para depois. Como dizia um ex-patrão que tive, o problema de dinheiro emprestado é que depois temos de devolver, com juros e correção!

A economia mundial, principalmente a economia ocidental, se viciou em crédito e agora viver sem isso é muito difícil, tão difícil quanto é difícil ao ser humano abandonar seus vícios, como o álcool, o fumo ou drogas! Para pagar a dívida acumulada consumindo no passado, teremos de trabalhar mais e consumir menos no futuro!

Para as nações ocidentais, chegou a hora de pagar a conta. Como num belo jantar no melhor restaurante da cidade, estão todos sentados à mesa, sem dinheiro no bolso, talão de cheque ou cartão de crédito, super empanturrados de comida e bebida. E quando o garçom apresenta a conta, ninguém olha para ele esperando que alguém mais corajoso se atreva a perguntar quanto é ou proponha um empréstimo salvador de última hora.
E neste momento ainda aparecem alguns “penetras” querendo comer na mesma mesa, viver na mesma fartura e ainda pedindo para algum troco para a condução ou para a gasolina!

Ao pousar meu olhar sobre esses acontecimentos bastante atuais e usando uma perspectiva histórica, peço licença a Karl Marx para citar duas de suas frases mais significativas, entre muitas, para tentar aproximar do cerne da questão, como eu a vejo: “Todo sistema traz em si os germes de sua destruição” e “a história se repete uma vez como tragédia, a outra como farsa”.

Com relação à primeira frase, acredito que há certa concordância entre países ricos e pobres de que é impossível estender os padrões de consumo existentes nas nações mais desenvolvidas compreendendo cerca de 1 bilhão de pessoas para todas as nações do mundo que totalizam hoje 7 bilhões de pessoas! A menos que algum avanço tecnológico quântico consiga transformar escassez em abundância, essa equação não fecha! Vai precisar tempo, muito tempo para que isso venha a ser possível, mas, como o exemplo da China demonstra, as nações menos desenvolvidas têm muita pressa e as desenvolvidas, nenhuma!

Marx acreditava que, assim como a expansão do comércio e a acumulação do capital em mãos dos capitalistas destruíram o feudalismo, o surgimento da classe trabalhadora e a luta de classes destruiriam o capitalismo. Ele acertou o diagnóstico fatal, mas não diagnosticou o germe, o vírus, a doença!

A disseminação do modelo de consumo ocidental, a escassez de recursos naturais e a degradação ambiental é o germe que corrói nosso sistema. Tanto a questão da disponibilidade de recursos naturais para sustentar os níveis atuais de consumo das nações mais desenvolvidas como os impactos ambientais da exploração desenfreada desses recursos permanecem como termos sem solução nessa equação. E embora haja acordo sobre a necessidade de equalização sob o princípio da solidariedade e da justiça universal e sobre a necessidade de preservar o meio ambiente não só para nós como também para as futuras gerações, há pouco entendimento sobre quem irá pagar o custo da equalização e da preservação.

Somente um revolucionário avanço tecnológico poderá modificar essa equação. Mas a parcimônia com que os países mais desenvolvidos transferem sua tecnologia demonstra que mesmo que esse salto tecnológico deverá ser utilizado em benefício exclusivo de quem o desenvolveu. Uma segunda alternativa é a paralisação desse processo virtuoso de redistribuição da riqueza e de expansão do bem-estar social em nível mundial ou então uma terceira via, onde os padrões de consumo e nosso modo de vida são modificados radicalmente para conciliar nossas necessidades com a disponibilidade de recursos e a capacidade do ecossistema da Terra suportar a presença humana.Acredito numa solução composta dessas três vertentes, mas isso se dará numa perspectiva de longo prazo, após muitas marchas e contramarchas. Vai ficar quem sabe, com certo otimismo, para a Rio+40

Dois pontos de divergência nas discussões da Rio+20 demonstram muito bem isso. Vão os países ricos e mais desenvolvidos pagar a conta da proteção ambiental? Estarão os países desenvolvidos dispostos a transferir gratuitamente aos países menos desenvolvidos as tecnologias necessárias para a proteção ambiental? A resposta, como vimos, foi um sonoro não!

Dentro do G20, as discussões sobre como pagar a conta do endividamento das nações europeias não evoluem. Não se encontra ninguém disposto a enfrentá-la, seja pela redução do padrão de vida e consumo e aumento da poupança, seja pelo refinanciamento dessas dívidas. A resistência obstinada da Alemanha, uma das nações mais beneficiadas pela integração europeia e pela desintegração da União Soviética e do Leste Europeu, é um exemplo muito claro da falta de solidariedade nessas horas.

Com relação à segunda frase, “a história se repete uma vez como tragédia, a outra como farsa”, toda vez que o mundo enfrentou dilema semelhante no passado, do limiar das guerras napoleônicas à antessala das duas grandes guerras mundiais (na realidade a segunda foi apenas a continuação da primeira) a história se fez como tragédia, custando sofrimento, destruição e milhões de mortes.

Embora ainda não tenhamos um desfecho da crise atual, numa visão particular do que vejo no Rio+20 e nas reuniões do G20 me permitem afirmar que, como agora somos mais civilizados (eu espero), a história desta vez se repetirá como uma farsa, eivada da hipocrisia norte-ocidental. A grande vantagem será desmascarar a farsa sobre a universalidade do sistema de vida ocidental e sobre a amizade e a solidariedade entre as nações. Amizade pode existir entre as pessoas e até entre os povos, mas, entre as nações, o que existe são apenas interesses. E é muito interessante observar que as nações mais resistentes nesse processo são as grandes democracias ocidentais cujos eleitores de forma direta ou indireta sustentam a posição tão retrógrada desses governos em termos de justiça universal e proteção ambiental.

Mais do que nunca, nesses dois encontros, o que mais se discute são os interesses nacionais em detrimento dos interesses da humanidade. Embora haja pouca esperança sobre a mudança da natureza humana, da lógica das nações e dos interesses nacionais, espero estar certo no meu diagnóstico sobre a farsa, pois numa farsa pelo menos podemos rir das nossas próprias desgraças!

José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras.
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As variáveis do futuro chinês

Por Vista Chinesa
18/06/12 10:59

 

Na charge do norte-americano David Horsey, Tio Sam pergunta sobre o seu futuro. "Não sei ler chinês", responde a cigana.

Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai

Ruchir Sharma, o analista que publicou na revista “Foreign Affairs” de maio/junho um provocador artigo de alerta sobre a economia brasileira, argumenta, no recente livro “Breakout Nations” (nações em fuga), que os mercados passaram a usar informações de prazo muito longo para tomar decisões de investimento de prazo muito curto. Essa, em sua avaliação, não é uma estratégia razoável. Dá como exemplo os investidores americanos: atualmente, eles mantêm ações em suas carteiras por um período médio de menos de quatro meses (o prazo era de 16 anos nos anos 60), mas querem imaginar que suas aplicações estão fundamentadas num futuro distante de alta segurança. Daí o sucesso dos estudos que preconizam quais serão as grandes economias em 2020, 2030 e até 2050.

As análises mais recentes da economia chinesa padecem do mal oposto. Até há não muito tempo, as reflexões sobre a China tinham foco no longuíssimo prazo. Não é mais assim. A crise europeia e as incertezas sobre o seu desdobramento criaram um ambiente de tal insegurança na economia internacional que se tornou incomum refletir sobre a China numa perspectiva temporal ampla.

Tudo é razão para sobressalto. Cada anúncio de um novo dado sobre crescimento, comércio, volume de empréstimos bancários, investimentos diretos e produção industrial desperta imediatamente algum temor sobre o porvir. A China não é uma economia aberta para investimentos de portfólio. Eles são admitidos dentro de quotas. Mas os mercados querem desesperadamente antecipar o que acontecerá aqui, seja porque sempre se interessam em acrescentar algum fato novo ao ambiente geral de especulação (só assim alguns ganham dinheiro), seja para saber o tamanho do buraco em que a economia internacional está metida. Como o próprio governo chinês tem dado sinais de apreensão diante dos dados apurados recentemente, fica ainda mais tentador, a partir de resultados de curtíssimo prazo, avaliar o longo.

Na ausência da bola de cristal, as opiniões divergem, mas a tendência mais comum é considerar que os dados recentes refletem um futuro menos promissor para a China do que se esperava até então. Uma linha de raciocínio é a esposada pelo próprio Ruchir Sharma no seu livro: a China é o Japão dos anos 70, Taiwan dos anos 80 e a Coreia do Sul dos anos 90. A exemplo dessas três economias, caminha para taxas de crescimento subitamente mais baixas. Quando o PIB chinês era US$ 1 trilhão, no final dos anos 80, crescimento de 10% significava expandir a economia em US$ 100 bilhões. Com o PIB da ordem de US$ 6 trilhões, crescimento de 10% ao ano significa expansão anual de US$ 600 bilhões. É demais.

Outra, a China corre o risco de cair na armadilha das economias de renda média dos países do Sudeste Asiático, que cresceram por taxas elevadas durante algumas décadas, mas não conseguiram ultrapassar a barreira que ainda os separa das economias avançadas. Outra ainda: crescendo pela via do investimento e da geração do emprego, incorporando pouca eficiência à economia, a China começou a perder gás.

Os mais alarmistas projetam que, se a China continuar a crescer a taxas muito elevadas, precisará consumir uma tal quantidade de água, energia, recursos minerais e alimentos que não encontrará suprimento no mundo. Por isso, inevitavelmente estancará.
Em contraposição a essas reflexões, está a idéia, prematura também, a meu ver, de que a China sempre projetou mudança de rumo. O momento da mudança chegou.

Otimistas e pessimistas têm de admitir que, como ouvi há alguns dias de um sólido acadêmico chinês, nos próximos anos a China crescerá a taxas elevadas porque ainda é um país com grandes áreas de pobreza. Países pobres, com eficiência na gestão, tendem a crescer a taxas altas.

Além disso, os fatores que motivaram o crescimento continuam presentes, ou seja, poupança elevada, empreendedorismo, políticas macro razoavelmente sólidas (apesar da especulação sobre o endividamento dos governos locais), um Estado organizado e cheio de engenheiros.

Os planos chineses, é sabido, projetam que o país caminhará na direção de passar de exportador a importador de bens, de importador a exportador de capital e de comprador a vendedor de inovação. E buscará chegar lá por meio de avanços graduais e seguros.

Mas a crise internacional mais recente, ainda mais do que a de 2008, embaralhou o cenário. A transformação gradual da realidade, no ritmo que se antecipava, talvez não seja uma estratégia tão viável como antes. Possivelmente será necessário acelerar o curso de algumas reformas essenciais, não para que a China pobre cresça, mas para que a parte da China que deu certo continue avançando bem.

O quadro político nem sempre ajuda. Na ausência de líderes fortes, que fixem o caminho na base do fazer sem pensar muito de Deng Xiaoping, o sistema funciona por consenso. As decisões sobre temas controvertidos podem ser lentas. Além disso, as lideranças antigas, mesmo fora do governo, continuam a se posicionar. Ouvi outro dia de um acadêmico de Pequim que, mesmo com os reformistas muito ativos na nova administração que se inicia em 2013, eles precisarão de dois anos para fazer valer as suas ideias.

Se as ineficiências naturais a qualquer sistema político tiverem grande impacto sobre as decisões na China, o cenário poderá até pender para a visão dos pessimistas. Mas é cedo para avaliações definitivas. A maneira como o novo governo reagir às necessidades internas e aos inevitáveis reflexos da realidade externa, e, sobretudo, a velocidade com a qual vai impulsionar certas reformas, ajudarão a descobrir quem tem razão sobre o futuro.

Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.
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A censura chinesa não teme críticas ao regime

Por Vista Chinesa
15/06/12 10:33

Caricatura da Polícia da Internet da cidade de Shenzhen, sul da China. De nome JingJing, imagem costuma aparecer em fóruns de discussão locais.

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan)

O regime chinês conta com um sofisticado aparato de censura que atualmente emprega centenas de milhares de pessoas. Mas se engana quem pensa que o principal objetivo do braço repressivo do Partido Comunista chinês (PC) seja silenciar vozes críticas às políticas ou ações do governo. Na verdade, a sua raison d’être consiste em evitar a mobilização social.

Após os protestos na praça da Paz Celestial, em 1989, o governo chinês reforçou o seu aparelho repressivo. A orientação de Deng Xiaoping e demais lideranças do PC consistia em garantir a “estabilidade social” a todo custo. Essa ênfase ocasionou mudanças nas táticas do PC em lidar com os dissidentes. Os censores resolveram centrar as suas atenções aos críticos do regime cujos textos ou ações poderiam, na visão deles, servir para estimular o surgimento de movimentos independentes. Enquanto o regime perseguia esses dissidentes de forma implacável, os demais opositores geralmente eram deixados de lado, mesmo quando destilavam as suas críticas ao PC em artigos, discursos ou salas de aulas.

Observamos, então, que o regime passou a distinguir as críticas ao regime que consideravam inofensivas daquelas que poderiam funcionar como estopim para a organização e mobilização da população.

A nova tática empregada pelos censores chineses criou certos espaços para a liberdade de expressão, principalmente nos meios de comunicação e no ambiente universitário. Havia uma maior tolerância às críticas do governo por professores universitários, contanto que suas observações ficassem confinadas às discussões de sala de aula. Jornalistas também testavam os limites da censura por meio da publicação de artigos sobre temas menos sensíveis, como escândalos de corrupção nos governos locais ou problemas ambientais.

A orientação da censura chinesa pós-1989 também pode ser observada nitidamente na maneira como o governo lida atualmente com o conteúdo das redes sociais. Em seu estudo “How Censorship in China Allows Government Criticism but Silences Collective Expression” (como a censura na China permite críticas ao governo, mas silencia expressão coletiva), o cientista político da Universidade Harvard Gary King argumenta que a censura chinesa direciona seus esforços às discussões _geralmente no âmbito local_ que ameacem encorajar a ação coletiva dos seus cidadãos. Com base numa análise do conteúdo de 1.400 diferentes redes sociais em 2011, King mostra que as críticas ao governo chinês não são necessariamente alvo dos censores.

King cita o exemplo do ativista ambiental Chen Fei, em Wenzhou, na Província de Zhejiang. Embora as suas iniciativas de proteção do meio ambiente contem com o respaldo de Pequim, os censores apagaram sistematicamente os comentários de apoio ao trabalho do ativista nas redes sociais por considerarem que tais opiniões poderiam incitar uma mobilização da população local que não estivesse sob controle do governo.

Em contrapartida, a censura parece ter fechado os olhos à maioria das críticas explícitas às políticas de filho único e de educação. Conforme assinala o estudo de King, apenas um pequeno percentual dos comentários sobre esses assuntos acabou sendo censurado em 2011.

Segundo King, entre os acontecimentos no ano passado que deixaram os censores chineses em estado de alerta se destacam a prisão do dissidente Ai Weiwei, os protestos na Mongólia Interior e o acidente nuclear em Fukushima no Japão. Nos dois primeiros casos _Ai Weiwei e Mongólia Interior_, a censura mostrou tolerância zero, apagando das redes sociais tanto críticas quanto elogios à ação do regime. King explica que os censores identificaram esses dois casos como apresentando um elevado “potencial de ação coletiva” por parte da população. Nesse sentido, a ação dos censores foi norteada por uma preocupação com uma possível mobilização dos cidadãos chineses _tanto a favor do regime como contra ele_, e não por se tratar de um assunto politicamente sensível.

Os censores demonstraram um raciocínio semelhante no caso do acidente nuclear em Fukushima. Logo após o acidente, começaram a circular rumores _em especial na Província de Zhejiang_ de que o iodo no sal serviria para proteger as pessoas contra a radiação que ameaçava chegar à China. Tais rumores serviram para estimular uma corrida dos chineses em Zhejiang às lojas a procura de sal. A censura, argumenta King, passou então a concentrar esforços em apagar os comentários a esse respeito nas redes sociais para controlar a situação.

O estudo de King revela um elevado grau de sofisticação da censura chinesa, desafiando duas percepções equivocadas sobre o impacto das mídias sociais no país. Primeiro, os censores não procuraram eliminar toda e qualquer crítica ao regime. Apenas dois assuntos, segundo King, são apagados sistematicamente: pornografia e críticas aos censores. Segundo, as redes sociais, em vez de ameaçar, auxiliam o PC a manter o seu controle sobre o país. Nesse sentido, as críticas ventiladas no mundo virtual atuam como uma espécie de termômetro do humor da população chinesa, permitindo ao governo aprender a avaliar e lidar com problemas sociais. E a sobrevivência do PC depende do sucesso de suas lideranças em resolvê-los e atender aos anseios de seus cidadãos.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.

 

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É tudo para hoje! Mais de 9 milhões prestam o "vestibular chinês"

Por Vista Chinesa
13/06/12 04:22

Por Sun Ningyi, de Pequim

Doze anos de estudo para conseguir um bom resultado em dois dias. Na última quinta e sexta-feira, 9,15 milhões de estudantes chineses participaram do gaokao, o “vestibular chinês”, para tentar uma vaga nas universidades de elite do país.

O gaokao altera a rotina de toda a China. Em Pequim, os alunos podem pegar táxis gratuitamente se mostram sua inscrição, as escolas têm ambulâncias de plantão e  segurança reforçada. Num bairro da cidade, os sapos de uma lagoa chegaram a ser mortos por envenenamento para assegurar um ambiente tranquilo antes da prova.

Dentro das famílias é ainda mais intenso. Com uma geração quase inteira de filhos únicos, todos “se preparam” para o gaokao. “Estou mais nervoso que o meu filho!”, conta a esta repórter o pai do aluno Yan Haijia, que estava fazendo a prova de inglês na tarde de sexta-feira. Junto com outros pais chineses, ele estava esperando pelo filho desde o início da prova na frente do portão da escola secundária ligada ao Instituto de Ferro e Aço de Pequim.

“Para o meu filho ter uma boa preparação para o exame, nos últimos dias ficamos hospedado num hotel perto daqui”, disse Yan, orgulhoso por oferecer ao filho um bom ambiente de estudos.

A maioria dos estudantes participando do gaokao deste ano nasceu em 1993 ou 1994. Os pais chineses sabem que, sem o diploma de universidade relativamente boa, será bastante difícil para os filhos terem um bom emprego no futuro. Por isso, a decisão de “investir” no gaokao.

Muitas vezes, a conta sai cara. Yang Jingtian, a mãe de uma aluna que fez o gaokao na Terceira Escola Secundária da cidade de Yantai, publicou na internet as despesas com a filha no ano da reta final:

  • Aulas particulares: 100 yuan por hora para cada curso. A minha filha fez duas aulas cursos diferentes cada semana durante dez meses: 16 mil yuan
  • Cursos de inverno e verão: 2.000 yuan
  • Despesas com material: 3.000 yuan
  • Comida nutritiva especial: 9.000 yuan
  • Custo do hotel durante o período da prova: 320 yuan
  • Total: 30.000 yuan (R$ 9.700)

Na teoria, os alunos chineses, sejam de uma grande metrópole ou de uma vila remota, pela primeira e única vez estão na mesma linha de partida para concorrer entre si. Por isso, o gaokao, realizado apenas uma vez por ano, é chamado muitas vezes de a prova mais justa na China. Contudo a realidade é outra.

No dia 1º de março, mais de 90 mil pais, na maioria trabalhadores migrantes que trazem os filhos para a cidade onde eles trabalham, publicaram a carta aos representantes do Congresso Nacional do Povo (Legislativo), pedindo para cancelar as restrições contra os alunos sem a residência permanente do local (hukou).

Segundo o Censo mais recente da China, de 2010, há 27 milhões de estudantes que migram para a cidade onde os pais trabalham. Mesmo que tenham estudado na cidade por vários anos, esses jovens têm de voltar à terra natal deles para fazer as provas, sem direito a aproveitar as políticas favoráveis aos alunos locais.

Segundo o professor Zhang Qianfa, da Faculdade de Direito da Universidade de Pequim, os alunos de Guangdong e Anhui, duas Províncias ao sul da China, têm apenas de 1% de probabilidade em comparação aos alunos de Pequim para entrar na Universidade de Pequim, uma das melhores do país.

Mal comparando, é como se um paraense morando em São Paulo tivesse de viajar até a sua cidade natal para fazer o vestibular para a USP. E, apesar do esforço, ver suas chances reduzidas a quase zero por não ser paulista.

Além da injustiça existente no sistema de gaokao, a vida pós-vestibular dos jovens está se tornando uma nova preocupação dos chineses.

De acordo com o jornal “Diário do Povo”, depois do gaokao, o tempo médio dedicado aos estudos baixa de 13 horas por dia para 1 hora. Alguns alunos começam a relaxar totalmente _navegam na internet, fazem festa a noite inteira ou até apelam a atividades bem extremas.

A televisão Shaoguan, uma cidade da província Guangdong da China, publicou um vídeo no seu weibo a versão chinesa de Twitter, mostrando os alunos da Quinta Escola de Shaoguan rasgando seus livros didáticos e lançando-os para o céu. Um internauta chamado Ho—Longshiqiang comentou sobre o vídeo: “Desde criança, estávamos forçados a estudar tanto. Agora que finalmente chega o momento de sair desse tipo de vida, por que não podemos ficar loucos por uma vez?”

O momento deste relaxamento completo terminará quando sair o resultado do gaokao, 15 dias depois do exame. A estimativa é de que 75% dos inscritos sejam aprovados. Ou seja, 2,3 milhões de alunos não terão a chance de receber educação universitária. Alguns entre eles provavelmente escolherão a fazer um curso na escola técnica, cujo diploma não ajudará tanto na hora de entrar no mercado de trabalho.

Mesmo para os que entram nas universidades, o diploma universitário não garante necessariamente um emprego. Segundo o Relatório de Emprego dos Estudantes Universitários da China, emitida pela Academia Chinesa de Ciências Sociais em junho, 570 mil universitários formados no ano passado, 9,3% de total, estão desempregados.

O gaokao, assim como o vestibular no Brasil, é um pesadelo mas também um passo necessário rumo a uma vida com mais desafios no futuro.

Sun Ningyi é colaboradora da Folha em Pequim.
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O mito dos protestos pró-democracia na China em 1989

Por Vista Chinesa
08/06/12 10:50

Um dos dezenas de postes com câmeras da praça da Paz Celestial, centro de Pequim (Fabiano Maisonnave - Folhapress/4.jun.2012).

Por Eric Vanden Bussche, de Taipé (Taiwan).

A passagem de mais um aniversário do “Massacre da Praça da Paz Celestial” nesta semana seguiu o ritual de sempre: vigílias em Hong Kong e Taiwan, discursos de dissidentes chineses no exterior e artigos na mídia internacional sobre os esforços do Partido Comunista chinês (PC) em garantir que a data passasse despercebida no país.

Mas uma questão fundamental esteve ausente do debate sobre os trágicos acontecimentos de 3 e 4 de junho de 1989, talvez porque geraria um certo desconforto entre os críticos do regime chinês: é correto rotular os protestos de 1989 de “pró-democracia”?

Não é difícil entender por que a mídia estrangeira enxerga as manifestações de 1989 como “pró-democracia.” Durante semanas, estudantes de todos os cantos do país covergiram na praça da Paz Celestial, o coração político da China, para pedir mudanças e debater o futuro. Aos poucos, os protestos ganharam a adesão de outros segmentos da sociedade. Ouvia-se a palavra “democracia” (minzhu) nos discursos. Alunos de uma academia de artes inclusive ergueram na praça a “Deusa da Democracia,” uma estátua que se tornou um dos símbolos do movimento.

Os estudantes atraíram a simpatia tanto dos habitantes da cidade quanto de pessoas ao redor do mundo que assistiam às imagens na televisão. O regime chinês parecia mostrar os mesmos sinais de exaustão que aqueles no Leste Europeu e União Soviética. Mike Chinoy, correspondente da rede norte-americana CNN em Pequim, chegou a comparar os protestos com o movimento democrático-popular que havia derrubado o presidente filipino Ferdinand Marcos em 1986, após mais de 20 anos no poder.

A mídia ocidental infelizmente construiu uma narrativa simplista dos acontecimentos de 1989, retratando um movimento pacífico, pró-democracia, que acabou sendo esmagado de forma violenta por uma ditadura comunista. Essa versão acabou moldando uma percepção dos protestos como uma luta do bem contra o mal, empobrecendo o debate acerca do significado dos acontecimentos naquela época e nos dias atuais.

“Em sua cobertura, os jornalistas ocidentais pareciam copiar os métodos dos historiadores marxistas chineses. Eles reduziram o acontecimento a uma guerra entre opressores e oprimidos,” me disse um professor de história da Universidade de Pequim há alguns anos. “A narrativa do PC sobre as manifestações é quase idêntica à da imprensa ocidental, a única diferença é que os soldados são os heróis, e os estudantes, os vilões.”

Apesar do empenho do PC em apagar da memória coletiva o “incidente de 4 de junho” (como o movimento é conhecido na China), os protestos ainda são discutidos em universidades. Quando realizava pós-graduação na Universidade de Pequim no final dos anos 90, tive a oportunidade de presenciar vários debates sobre o assunto em sala de aula e conversar com pessoas que haviam participado ativamente do movimento. Nem todos compartilhavam a mesma opinião, mas nenhum deles caracterizava o movimento como “pró-democracia.”

Embora os manifestantes frequentemente utilizassem o termo “democracia” em seus discursos, cada um parecia entender o conceito de forma distinta. Um médico que esteve na praça durante várias semanas me disse: “Para alguns, significava maior liberdade de imprensa. Para outros, acabar com a prática de universidades em aceitar filhos de burocratas poderosos do PC e melhorar as condições nos dormitórios estudantis. E para um amigo meu que estudava literatura, era poder tomar uma ducha quente todos os dias”.

Até mesmo Chai Ling (uma das líderes mais radicais do movimento) afirmou, em uma entrevista para um jornalista norte-americano, que achava que os estudantes “não possuíam nenhuma noção de democracia”.

Então, afinal, o que queriam os estudantes? “Estávamos lá porque sentíamos que alguns dos nossos governantes haviam se afastado dos ideais socialistas, que eles não estavam mais preocupados com o povo, que queriam apenas enriquecer” me disse uma tradutora, que na época estudava inglês. “Nós queríamos dialogar (duihua) com o governo para reduzir as injustiças sociais e os abusos de poder. Sob essa ótica, os protestos de 1989 são bastante semelhantes aos de hoje.” Wang Dan, um dos líderes do movimento, assinalou que “nós não queremos derrubar o Partido Comunista ou o socialismo”.

Os manifestantes também almejavam uma distribuição mais justa dos frutos gerados pela política de abertura econômica. Eles estavam preocupados com os efeitos colaterais das reformas: aumento da inflação, corrupção e perda de benefícios sociais antes assegurados pelo Estado. Entrea as sete reivindicações iniciais dos estudantes em 17 de abril estava o aumento da remuneração dos intelectuais e a publicação da renda dos governantes e seus familiares. Wu’er Kaixi, outro líder do movimento, enfatizou que: “Nós não temos o idealismo fanático que nossos irmãos e irmãs mais velhos tinham. Então o que queremos? Tênis Nike e muito tempo livre para levarmos as nossas namoradas para bares.”

Alguns com quem conversei descreveram as manifestações como um local de fuga da rotina cotidiana. Uma professora universitária, que na época realizava sua pós-graduação em russo, resolveu ir à praça na esperança de conhecer o cantor taiwanês Hou Dejian, que havia se juntado aos manifestantes. “Minhas amigas e eu não estávamos muito interessadas em política. Estávamos contagiadas pela euforia do movimento, pela possibilidade de podermos deixar de lado as pressões que faziam parte do nosso dia-a-dia,” me contou, frisando que as pessoas na praça não falavam em derrubar o regime, mas em corrigir certas injustiças. “Mas, quando vi os soldados atirando nas pessoas, foi a partir desse momento que passei a odiar o PC.”

Ao mesmo tempo em que essa professora destilava sua raiva contra o governo pela repressão violenta, ela também não poupava críticas aos líderes estudantis. “Estava muito claro para nós que o movimento não iria alcançar absolutamente nada. Os líderes estudantis estavam sempre brigando entre si. Como que eles iriam dialogar com o governo se ninguém tinha uma estratégia e reivindicações bem definidas?”

À medida em que o movimento crescia em meados de maio, as cisões dentro do movimento se aprofundavam e emergiam novas facções que lutavam pelo controle. Durante uma entrevista alguns anos mais tarde, Wu’er Kaixi lamentou que os alunos perderam oportunidades em negociar com o governo em virtude dessa radicalização. Esses desentendimentos entre as lideranças estudantis contribuíram para o trágico desfecho do movimento na noite e madrugada de 3-4 de junho e sedimentou a narrativa da mídia ocidental acerca dos acontecimentos.

Nas mais de duas décadas que se seguiram, o PC passou a utilizar essa narrativa simplista para nutrir um sentimento antiocidental entre a sua população. Em um artigo publicado em 2009, o jornalista britânico James Kynge _que cobriu os protestos para a agência de notícias Reuters_ argumentou que a insistência do Ocidente em retratar o movimento como “pró-democracia” serviu apenas para reforçar o discurso do PC de que os norte-americanos e europeus continuam interferindo nos assuntos internos do país, se esforçando para impor seus valores aos chineses e para criar obstáculos à ascensão da China como potência.

As feridas abertas pelo desfecho do movimento apenas irão cicatrizar quando todas as partes envolvidas deixarem de lado as suas interpretações simplistas, eivadas de estereótipos. Mas isso provavelmente não acontecerá num futuro próximo.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.
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Pra não dizer que não falei das Chinas!

Por Vista Chinesa
06/06/12 10:44

Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro

Vendedor de rua arruma peças de mahjong (xadrez chinês), em Xangai (Reuters - 16.abr.2012)

Acabo de chegar de uma viagem de uma semana pela Ásia, quando pude visitar Japão, Coreia, Cingapura, Malásia e Filipinas. Desta vez não fui à China, que pretendo visitar em julho. Na longa viagem de ida e volta, nas noites insones decorrente da mudança radical do fuso horário e nas longas esperas em aeroportos, além dos meus muitos afazeres profissionais, dediquei-me à leitura dos vários artigos publicados neste blog e também dos comentários dos leitores, bastante elucidativos em relação à imagem da China perante os brasileiros.

Esses comentários, das mais variadas naturezas, alguns elogiosos, muitos críticos, outros concordando com os pontos de vista apresentados nos artigos e muitos discordando, forneceram um valioso material para expor outra característica da China que é ser multifacetada, fruto do seu desenvolvimento histórico, político, social e econômico. Um país de contrastes ainda maiores do que o nosso Brasil!

Sempre que leio um comentário de um leitor neste blog, a primeira coisa que me ocorre não é concordar ou discordar, mas puxar pelo meu conhecimento da China e concluir de que China o leitor está falando. O mesmo artigo é lido por centenas de pessoas, mas cada leitor acaba entendendo aquilo que quer entender! Essa é conclusão da minha leitura dos vários artigos já publicados pelos vários articulistas e do posicionamento dos leitores que nos dignam com seus comentários.

A China é como aquele personagem do teatro chinês (ópera de Sichuan) que, vestido a caráter e mascarado, vai trocando suas máscaras coloridas com enorme rapidez de forma imperceptível aos nossos olhos, de acordo com seu estado de espírito ou a cena que está representando. Bian Lian, mudança de máscara ou “face changing”, em inglês, é uma arte milenar chinesa e um segredo bem guardado. Essa arte é praticada apenas por homens das mesmas famílias e vedada às mulheres, que, após se casarem, podem levar o segredo para outras famílias.

Sendo a China o personagem deste blog, quem muda a máscara da China é o leitor que a vê, de acordo com seu estado de espírito, suas crenças, seus valores e a sua interpretação da realidade. Por desconhecimento, preconceito ou mesmo por convicção, cada um de nós vê a China que quer ver e não a que realmente ela é. A objetividade do observador cede espaço à subjetividade do leitor engajado em termos políticos, ideológicos, ecológicos ou dos direitos humanos. A realidade sucumbe à subjetividade do leitor polemista ou do leitor mal informado!

Essa característica única da China nos dias atuais é fruto dessa dimensão multifacetada de sua sociedade. Poucos países são capazes de gerar impressões tão diametralmente opostas e tão contraditórias como a China!

A China é um país continental com quase 10 milhões de km2, uma geografia e paisagens variadas com mais de 1,3 bilhão de habitantes de várias etnias, línguas, dialetos, fisionomias e mais de 5.000 anos de história. Uma cultura e uma arte popular arraigada muito rica e variada, tudo isso demonstrado em livros, filmes, na televisão de uma forma maciça e quase onipresente.

A diáspora chinesa, impulsionada pela derrocada da última dinastia imperial, pela Guerra do Ópio contra os ingleses, pela invasão de europeus e japoneses e depois pela vitória de Mao e sua Revolução Comunista, espalhou os chineses pela Ásia e por toda parte deste mundo.

Os chineses e a China são onipresentes! Com sua cultura, com sua história, com o tamanho de seu país, com o tamanho de sua população e, agora, com a presença avassaladora dos produtos “made in China”!

Essa nação superlativa gera todo tipo de sentimento pelo simples fato de existir. Respeito, admiração, espanto, medo, temor, ressentimento, preconceitos, todos esses sentimentos habitam todos nós e afloram de forma mais acentuada quando somos levados a externar nossas opiniões a respeito.

Na China de hoje, é possível ver a pujança moderna e ocidentalizada das cidades costeiras e ao mesmo tempo a pobreza e o atraso dos vilarejos de suas regiões mais remotas. Mesmo nas suas modernas cidades, ainda é possível ver os resquícios de seu passado em bairros que nada devem ao caos das nossas favelas. Da mesma forma, é possível ver a infraestrutura moderna avançando pelo interior da China atingindo esses vilarejos paupérrimos. É comum carros de boi, carroças puxadas por cavalos, bicicletas e carrinhos puxados por homens e animais diversos transitando caoticamente por verdadeiras autoestradas excepcionalmente bem construídas rodeadas por verdadeiras choupanas e casebres sem nenhum saneamento básico. A China rica e a China pobre, a China moderna e China arcaica, a China hermeticamente limpa e a China suja e degradada convivem às vezes no mesmo espaço e ao mesmo tempo.

A China, governada pelo Partido Comunista forjado na doutrina marxista-leninista, de natureza coletivista, do controle estatal dos meios de produção e do planejamento central, convive com a China capitalista quase selvagem, que, nascida nas zonas especiais criadas por Deng Xiaoping, se espalha como uma praga devorando o que resta da velha ordem socialista.

A China rural, agrícola, bucólica, da economia de subsistência convive com a China da economia urbana, industrial e afluente. A China da energia fóssil e poluente do carvão mineral que joga na atmosfera bilhões de toneladas de carbono todo ano convive com a China verde, ecológica das grandes experiências de desenvolvimento da energia limpa como a eólica, a solar e a biomassa.

A China maoísta, do culto à personalidade e da Revolução Cultural, do massacre Praça da Paz Celestial, da perseguição aos dissidentes e do sistema judicial obtuso convive com uma China aberta, onde os estrangeiros têm ampla liberdade de circulação e de trabalho e onde a imprensa escrita, falada e televisada tem ampla liberdade para endereçar os mais diversos temas de sua sociedade que não questionem o sistema político e a hegemonia do Partido.

A verdadeira China é um amálgama de muitas Chinas. Para entendê-la, é preciso ter capacidade de, ao mesmo tempo, incluir, separar e sintetizar todas elas. Essas Chinas se contradizem, se explicam e se completam ao mesmo tempo.

Sob o peso de milhares de anos de impérios centralizadores e autoritários e umas poucas décadas republicanas seguidas de várias fases de seu comunismo metamórfico, a China feudal sobrevive com seus mandarins ainda no comando, travestidos de burocratas estatais, quadros partidários, generais e oficiais das Forças Armadas ou mesmo bem-sucedidos empresários capitalistas. A grande obra de Mao e do Partido Comunista foi simplesmente absorver (ou serem absorvidos) pela organização social milenar do império. Quanto mais muda, mais a China permanece a mesma, feudal, imperial, sem imperadores, mas certamente sujeita a algum tipo poder absoluto abaixo dos céus.

Essa é a natureza da China, cujas virtudes e mazelas apreciamos ou detestamos através da nossa ótica distorcida pela subjetividade dos nossos padrões forjados nas últimas décadas da nossa tão jovem democracia ocidental. De pouco mais de um século de democracia e de afluência ocidental, no caso brasileiro muito menos que isso, é questionável nossa capacidade para julgar e condenar uma nação de 5.000 anos com uma história repleta de feitos memoráveis, guerras fratricidas, cataclismos sociais e naturais devastadores.

Cada um de nós pode escolher uma China para elogiar, para criticar, para temer ou para admirar. Isso explica a amplitude dos comentários sobre a China que é possível ler neste blog e em outros jornais e revistas. Há uma China para cada um de nós escolher. Mas o que não podemos é ignorá-la, pois certamente a China terá uma influencia muito grande na moldagem do nosso futuro, queiramos ou não.

Cada chinês e a sociedade chinesa carregam dentro de si esse gene moldado pela longa história tão cheia de acontecimentos marcantes, remetendo ao futuro toda a força do seu passado. Em nenhuma outra sociedade, o existencialismo se apresenta de forma tão contundente como na sociedade chinesa. Em nenhuma outro país, o individual e o coletivo duelam de forma tão contraditória.

Quase 70 anos de revolução socialista pouco mudaram a essência desse país. Mas o mesmo pode ser dito do socialismo? A China muito mais mudou o socialismo do que foi mudada por ele. Os conceitos de socialismo, capitalismo e democracia nada têm a ver com a China e por ela são alterados, modificados em razão de sua própria dinâmica milenar. Se essa dinâmica vai mudar é uma questão para o futuro. Mas, se 5.000 anos de história dizem alguma coisa, a resposta já está dada.

José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras.

 

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