Na charge do caricaturista Harry Harrison, o panda chinês diz: "Sua vez".
Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro
O impasse verificado no desenvolvimento da conferência Rio+20, muito mais do que consolidar as divergências entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos sobre as questões ambientais e de desenvolvimento sustentado, expõe com clareza as divergências sobre o modelo de desenvolvimento econômico e social moderno e as possibilidades do nosso planeta em mantê-lo nos primeiros países e estendê-lo aos segundos.
O crescimento demográfico aliado aos fenômenos de urbanização, industrialização e disseminação dos padrões de consumo das nações mais desenvolvidas em direção às nações menos desenvolvidas tem exacerbado o conflito redistributivo em nível mundial. A globalização da economia e a monopolização dos mecanismos de mercado como forma de alocação de recursos e decisão sobre o que produzir e consumir expõe as enormes contradições abrigadas dentro do sistema via os impactos ambientais e o preço das “commodities” agrícolas e minerais, aí incluso o petróleo.
Acredito que a crise do endividamento das pessoas nos Estados Unidos e dos países na Europa seja parte integrante dessas contradições e expõe com bastante nitidez as dificuldades em compatibilizar o enunciado que colocamos em nosso primeiro parágrafo: manter o nível de vida das nações mais ricas e estendê-lo as nações mais pobres. Em outras palavras, tornar as nações mais pobres mais ricas dentro do mesmo padrão de consumo!
Nesse sentido, é bastante sintomático que as mesmas nações que se reúnem para discutir a crise econômica mundial no México dentro do G20 sejam as mesmas que se digladiam na discussão dos temas de sustentabilidade na conferência Rio+20.
Nesse cenário descrito acima, a China personifica aos abastados olhos norte-ocidentais tudo aquilo que deve ser evitado, um crescimento acelerado de uma nação pobre baseado em modelos de consumo ocidentalizados.
Quando Mao Tsé-tung morreu, em 1976, a China era um país rural de 1 bilhão de habitantes, pobre, quase paupérrimo, com 85% de sua população vivendo no campo numa economia de subsistência, com uma parca dieta vegetal, sem meios de transporte além de pernas, bicicletas e de seus animais.
A maior fonte de energia disponível era primária, tirada deles próprios ou da natureza sem nenhuma sofisticação industrial. A infraestrutura de energia e transporte era quase inexistente para o tamanho de sua população, e os padrões de consumo, tão frugais que seria impossível a um ocidental imaginar como eles podiam viver daquela maneira. O sonho de consumo de um chinês era um rádio e uma bicicleta, e a moda, ano após ano, eram os indefectíveis terninhos tipo Mao, com o mesmo design e cores, distribuídas duas ou três peças por habitante. Tudo era racionado, da comida ao sabonete. Os níveis de consumo da China, principalmente de alimentos, beiravam o limite da sobrevivência, daí a grande criatividade dos chineses nos ingredientes de sua culinária, principalmente no que tange a proteína animal.
O impacto da China no mercado mundial de commodities agrícolas, minerais e energia era zero, assim como seu impacto no mercado de bens industrializados. Embora já dispusesse de um razoável poderio militar e inclusive detentora de bombas nucleares, do ponto de vista do impacto econômico no mundo e pressão sobre recursos naturais e emissão de poluentes, tudo se passava como se a China e suas centenas de milhões de habitantes não existissem! Era um enorme ponto no mapa mundial despertando mais curiosidade do que qualquer preocupação. A China de Mao, em 1976, não era muito diferente da China vista por Marco Polo ao final do século 13 ou por Lorde MacCartney ao final do século 18. A China era um imenso país igualitário, vivendo na pobreza absoluta.
Em 2012, apenas 36 anos depois, a China de Hu Jintao, em termos mundiais, é a segunda maior economia, a primeira nação industrial e maior exportador de bens industriais. O país é hoje o maior produtor e consumidor mundial de aço, alumínio, cimento, automóveis, eletrodomésticos, computadores, roupas, sapatos, para nomear alguns itens. Maior consumidor mundial de alimentos, energia e commodities minerais. Nesse curto espaço de tempo, a China deixou de ser uma bucólica nação agrícola e rural para se tornar uma nação industrializada, quase urbana com mais de 50% de sua população vivendo nas cidades.
De uma modorrenta economia de subsistência, se transformou numa pujante economia de mercado. Uma nação praticamente sem infraestrutura se transformou no maior produtor mundial de energia, com uma extensa rede de estradas de rodagens, ferrovias, dezenas de portos e aeroporto, uma infraestrutura de colocar inveja em qualquer nação do primeiro mundo! Suas imensas cidades costeiras contadas às dezenas rivalizam com as mais modernas cidades do Ocidente em termos de padrão arquitetônico e modernidade.
Como decorrência da generalização dos padrões de consumo ocidentais, a China é hoje uma das nações que mais polui e que mais emite carbono na atmosfera terrestre. A China é também a nação que mais investe em energia renovável e uma nação que neste momento de grandes questionamentos a nível mundial realiza façanhas espaciais dignas dos Estados Unidos e União Soviética de outros tempos. Do ponto de vista social e econômico, a China de Hu Jintao é tudo que a China de Mao não era!
Com mais de 1,3 bilhão de habitantes e todo esse crescimento alicerçado no modelo econômico, social e hábitos de consumo ocidentais, a China é a demonstração prática da imensa contradição que se abriga no nosso sistema de vida. Os padrões ocidentais de desenvolvimento econômico e social não são compatíveis com sua universalização no nível atual de avanço tecnológico. O exemplo chinês, que ainda não atingiu nem de longe os padrões de vida e de consumo das nações ocidentais, é uma clara demonstração disso.
Nossa civilização ocidental desenvolveu um modelo econômico baseado na abundância relativa, isto é, os recursos do mundo são para todos e devem ser comercializados livremente pelas forças de mercado, mas os padrões de vida e consumo, não. Assim caberá a algumas nações e povos trabalharem mais e fornecerem os recursos. E a outras consumirem. Umas viverão na abundância e outras na penúria! Parafraseando Clausewitz, que dizia que “a guerra é continuação da política sob outros meios”, atrevo a dizer que “a globalização dentro da visão ocidental é a continuação do colonialismo e da escravidão sob outras formas”.
Depois de séculos de exploração colonial, a pregação pela abertura comercial e dos benefícios da economia de mercado, propagados à exaustão pelas nações abastadas do centro como modelo a ser seguido pelas nações pobres da periferia, parece não estar resistindo a seu grande teste que é o crescimento chinês. Imaginem se os demais 4,7 bilhões da população mundial seguirem o mesmo caminho da China! O crescimento acelerado da China era tudo que as nações ocidentais não sabiam que não queriam!
Um dos grandes méritos do crescimento chinês foi desmascarar o rei. Ele está nu como nunca esteve. A China fez isso usando os mesmos mecanismos de mercado e de acumulação usados pelas nações ocidentais que cresceram e elevaram seu padrão de vida por séculos, baseado no interesse nacional de cada país, de forma consciente ou inconsciente ou simplesmente pela ordem orgânica da reprodução capitalista. A China demonstra cabalmente a contradição fundamental do sistema capitalista e da nossa forma de vida, uma grande e apetitosa cenoura que nem todos podem comer, mas que continua nos levando na mesma direção.
O que vemos na Rio+20 e no G20 é verso e reverso da mesma moeda. O crescimento chinês está ocupando um espaço que era ocupado pelas nações desenvolvidas na expansão de seu bem-estar social. O crescimento da China alterou definitivamente o padrão das trocas internacionais, a grande fonte de crescimento da produtividade das nações industrializadas juntamente com o domínio da inovação tecnológica. Como forças políticas dominantes nessas nações ditas democráticas estão sujeitas ao sufrágio para se manter no poder, era natural a pressão para manutenção do status quo. Na falta de ganho nas trocas internacionais e nos avanços tecnológicos que permitissem o crescimento da produtividade e por consequência a evolução sustentada dos padrões de vida e de consumo, as nações e pessoas do ocidente usaram o mecanismo de que dispunham para manter ou mesmo elevar esse padrão, ou seja, o crédito.
Nos últimos dez anos que antecederam a crise de endividamento de 2008, as nações ocidentais progrediram e ampliaram seu padrão de vida e de consumo não somente com base em ganhos nas trocas internacionais e avanços tecnológicos, como vinha sendo o padrão desde o início da Revolução Industrial. A melhoria de vida e aumento do consumo foi baseada em grande parte no crédito fácil, até que fosse atingido o limite do endividamento.
Para essa festa creditícia que hipertrofiou o sistema financeiro alavancando perigosamente o PIB mundial, ajudou o forte crescimento da liquidez internacional e o apetite e a criatividade dos bancos para correrem riscos inaceitáveis e realocar essa enorme liquidez decorrente criação da União Europeia e da incorporação dos países comunistas de economias centralizadas à economia de mercado. Antiga União Soviética, os países do Leste Europeu, inclusive a Alemanha Oriental, e principalmente a China foram incorporados na economia de mercado e na economia ocidental provocando forte crescimento de produtividade e da liquidez em nível mundial, permitindo essa festa de endividamento proporcionada pela extrema criatividade e apetite por riscos do sistema financeiro internacional.
Forçosamente temos de mencionar a política de desregulamentação criminosa e relaxamento dos controles financeiros proporcionados pelas autoridades econômicas dos países ocidentais, quase sempre decorrentes do interesse político de se manter no poder proporcionando aos seus eleitores uma falsa impressão de abundância e desenvolvimento por meio do crédito farto e barato. Os Estados Unidos da América têm posição central nesse fenômeno monetário!
Um bom exemplo desse período é um discurso que vi um dia desses na televisão do então presidente George Bush falando antes da crise das hipotecas nos Estados Unidos, enaltecendo as virtudes da desregulamentação e o acesso a crédito, que permitia a um garçom (bartender, na sua expressão) comprar uma bela casa financiada a perder de vista e depois levantar mais crédito em cima da mesma casa para comprar outras coisas.
O crédito tem na economia o mesmo efeito da droga, pois permite consumir sem o ônus momentâneo da produção. O prazer que o consumo nos dá é equivalente às penas pelo qual passamos para poder pagar por ele. Abdicamos do ócio, abdicamos do lazer, do tempo com nossos familiares para trabalhar e poder consumir depois! Com o crédito, num primeiro momento só temos o prazer do consumo e postergamos as penas para depois. Como dizia um ex-patrão que tive, o problema de dinheiro emprestado é que depois temos de devolver, com juros e correção!
A economia mundial, principalmente a economia ocidental, se viciou em crédito e agora viver sem isso é muito difícil, tão difícil quanto é difícil ao ser humano abandonar seus vícios, como o álcool, o fumo ou drogas! Para pagar a dívida acumulada consumindo no passado, teremos de trabalhar mais e consumir menos no futuro!
Para as nações ocidentais, chegou a hora de pagar a conta. Como num belo jantar no melhor restaurante da cidade, estão todos sentados à mesa, sem dinheiro no bolso, talão de cheque ou cartão de crédito, super empanturrados de comida e bebida. E quando o garçom apresenta a conta, ninguém olha para ele esperando que alguém mais corajoso se atreva a perguntar quanto é ou proponha um empréstimo salvador de última hora.
E neste momento ainda aparecem alguns “penetras” querendo comer na mesma mesa, viver na mesma fartura e ainda pedindo para algum troco para a condução ou para a gasolina!
Ao pousar meu olhar sobre esses acontecimentos bastante atuais e usando uma perspectiva histórica, peço licença a Karl Marx para citar duas de suas frases mais significativas, entre muitas, para tentar aproximar do cerne da questão, como eu a vejo: “Todo sistema traz em si os germes de sua destruição” e “a história se repete uma vez como tragédia, a outra como farsa”.
Com relação à primeira frase, acredito que há certa concordância entre países ricos e pobres de que é impossível estender os padrões de consumo existentes nas nações mais desenvolvidas compreendendo cerca de 1 bilhão de pessoas para todas as nações do mundo que totalizam hoje 7 bilhões de pessoas! A menos que algum avanço tecnológico quântico consiga transformar escassez em abundância, essa equação não fecha! Vai precisar tempo, muito tempo para que isso venha a ser possível, mas, como o exemplo da China demonstra, as nações menos desenvolvidas têm muita pressa e as desenvolvidas, nenhuma!
Marx acreditava que, assim como a expansão do comércio e a acumulação do capital em mãos dos capitalistas destruíram o feudalismo, o surgimento da classe trabalhadora e a luta de classes destruiriam o capitalismo. Ele acertou o diagnóstico fatal, mas não diagnosticou o germe, o vírus, a doença!
A disseminação do modelo de consumo ocidental, a escassez de recursos naturais e a degradação ambiental é o germe que corrói nosso sistema. Tanto a questão da disponibilidade de recursos naturais para sustentar os níveis atuais de consumo das nações mais desenvolvidas como os impactos ambientais da exploração desenfreada desses recursos permanecem como termos sem solução nessa equação. E embora haja acordo sobre a necessidade de equalização sob o princípio da solidariedade e da justiça universal e sobre a necessidade de preservar o meio ambiente não só para nós como também para as futuras gerações, há pouco entendimento sobre quem irá pagar o custo da equalização e da preservação.
Somente um revolucionário avanço tecnológico poderá modificar essa equação. Mas a parcimônia com que os países mais desenvolvidos transferem sua tecnologia demonstra que mesmo que esse salto tecnológico deverá ser utilizado em benefício exclusivo de quem o desenvolveu. Uma segunda alternativa é a paralisação desse processo virtuoso de redistribuição da riqueza e de expansão do bem-estar social em nível mundial ou então uma terceira via, onde os padrões de consumo e nosso modo de vida são modificados radicalmente para conciliar nossas necessidades com a disponibilidade de recursos e a capacidade do ecossistema da Terra suportar a presença humana.Acredito numa solução composta dessas três vertentes, mas isso se dará numa perspectiva de longo prazo, após muitas marchas e contramarchas. Vai ficar quem sabe, com certo otimismo, para a Rio+40
Dois pontos de divergência nas discussões da Rio+20 demonstram muito bem isso. Vão os países ricos e mais desenvolvidos pagar a conta da proteção ambiental? Estarão os países desenvolvidos dispostos a transferir gratuitamente aos países menos desenvolvidos as tecnologias necessárias para a proteção ambiental? A resposta, como vimos, foi um sonoro não!
Dentro do G20, as discussões sobre como pagar a conta do endividamento das nações europeias não evoluem. Não se encontra ninguém disposto a enfrentá-la, seja pela redução do padrão de vida e consumo e aumento da poupança, seja pelo refinanciamento dessas dívidas. A resistência obstinada da Alemanha, uma das nações mais beneficiadas pela integração europeia e pela desintegração da União Soviética e do Leste Europeu, é um exemplo muito claro da falta de solidariedade nessas horas.
Com relação à segunda frase, “a história se repete uma vez como tragédia, a outra como farsa”, toda vez que o mundo enfrentou dilema semelhante no passado, do limiar das guerras napoleônicas à antessala das duas grandes guerras mundiais (na realidade a segunda foi apenas a continuação da primeira) a história se fez como tragédia, custando sofrimento, destruição e milhões de mortes.
Embora ainda não tenhamos um desfecho da crise atual, numa visão particular do que vejo no Rio+20 e nas reuniões do G20 me permitem afirmar que, como agora somos mais civilizados (eu espero), a história desta vez se repetirá como uma farsa, eivada da hipocrisia norte-ocidental. A grande vantagem será desmascarar a farsa sobre a universalidade do sistema de vida ocidental e sobre a amizade e a solidariedade entre as nações. Amizade pode existir entre as pessoas e até entre os povos, mas, entre as nações, o que existe são apenas interesses. E é muito interessante observar que as nações mais resistentes nesse processo são as grandes democracias ocidentais cujos eleitores de forma direta ou indireta sustentam a posição tão retrógrada desses governos em termos de justiça universal e proteção ambiental.
Mais do que nunca, nesses dois encontros, o que mais se discute são os interesses nacionais em detrimento dos interesses da humanidade. Embora haja pouca esperança sobre a mudança da natureza humana, da lógica das nações e dos interesses nacionais, espero estar certo no meu diagnóstico sobre a farsa, pois numa farsa pelo menos podemos rir das nossas próprias desgraças!
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada a cada 14 dias, às quartas-feiras.