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Vista Chinesa

por Fabiano Maisonnave

Conheça Os colunistas que fazem a Vista Chinesa

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Ventos da Birmânia

Por Vista Chinesa
23/04/12 10:12

Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai

Homem em trem de Yangon porta as fotos da oposicionista Aung San Suu Kyi e do pai, general Aung San, líder da independência assassinado em 1947. (Andrea de Andrade Ramos/Arquivo pessoal - 29.nov.2011)

É quase impossível viver no Leste Asiático e não acompanhar o que está ocorrendo em Mianmar (ex-Birmânia). Por isso volto ao tema, tratado recentemente neste blog num artigo de Eric Vanden Bussche. Mianmar impressiona por vários fatores: a beleza e o inusitado de suas paisagens físicas e humanas, a cultura budista, que permeia tudo, inclusive as discussões políticas, o fechamento e o atraso. Com uma área territorial do tamanho da França, o país foi a maior economia do Sudeste Asiático até os anos 60. A partir daí, com a ascensão dos militares ao poder, fechou-se para o mundo, econômica e politicamente. Passou a viver uma aventura inexplicável, sobretudo se levarmos em conta que os vizinhos se abriram, cresceram e prosperaram pela via da exportação e da atração de investimentos.

Quem em algum momento leu os relatos sobre a líder da oposição Aung San Suu Kyi, não
pode ficar alheio aos fatos recentes. Suu Kyi, aos 43 anos, deixou o marido e os
dois filhos na Inglaterra e voltou ao seu país para lutar pela democracia e proteção dos
direitos humanos. Filha de um dos próceres da independência, assassinado quando ela
tinha apenas dois anos, rapidamente tornou-se a maior líder de oposição. Seis meses
depois do seu regresso, quando convocou uma grande marcha em tributo aos que
haviam desaparecido e como denúncia de que os militares nunca deixariam o poder, foi
posta em prisão domiciliar.

Solta por curtíssimos períodos, ficou praticamente 20 anos detida dentro de casa. Em silêncio, foi uma das vozes mais contundentes pela liberdade no mundo. A vitória de seu partido, o NLD, em modestos 43 assentos no Congresso, não altera de imediato o panorama decisório no Mianmar. Mas é uma mudança extraordinária em relação ao passado. Tanto por parte do governo do presidente Thein Sein, ao abrir algum espaço para a oposição, quanto na posição da própria Suu Kyi, que terá agora de firmar compromissos com ideias muito diferentes das suas.

Há alguns anos, ouvi de um amigo birmanês que um país tão arraigadamente religioso
como o Mianmar nunca poderia se tornar uma democracia. Segundo ele, a democracia
exige um ambiente em que a tônica é o embate. Isso, disse-me, é incompatível
com o budismo. Na história recente do Mianmar, confrontaram-se duas leituras de
comportamento político: o isolamento de Suu Kyi e, com ele, a idéia de que apenas
os líderes que buscam um senso de espiritualidade estão preparados para governar, e
a junta militar, na concepção de que o budismo não aceita personalismos, mesmo na
condução dos temas do Estado.

Meu amigo birmanês, vejo agora, estava equivocado. No momento em que conversamos, ele fazia todo esforço possível para sair do país. Conseguiu. Está de volta. Não fugiu à regra geral. Eles quase sempre regressam. Shway Yoe, pseudônimo de J.G. Scott, britânico que residiu na Birmânia no final do século 19 e se tornou o mais importante comentarista da vida local, escreveu certa vez que o maior presente que um birmanês podia dar a um inglês era desejar-lhe que, em recompensa por suas boas ações, renascesse budista e, de preferência, na Birmânia.

A Carta da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), da qual Mianmar é signatário, estabelece no Artigo 1 que um dos propósitos da organização é fortalecer a democracia, melhorar a boa governança e a regra da lei, promover e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais. É um propósito, no mínimo, corajoso para uma associação que tem entre seus membros, além do próprio Mianmar, uma monarquia absolutista (Brunei Darussalam) e países dominados pelo mesmo partido desde a independência, há mais de 50 anos.

Templo Shwedagon, em Yangoon, cuja construção empregou dezenas de toneladas de ouro. (Andrea de Andrade Ramos/Arquivo pessoal - 3.abr.2012)

Em Mianmar, o Estado fechado e repressor sempre foi visto como menos democrático do que outros na região, sobretudo por deixar a população afundar-se na pobreza. Os governos em diversos países do Leste Asiático legitimam-se não pelo voto, mas pela promoção do bem estar. Enquanto, nos últimos 50 anos, Cingapura passou de uma renda per capita de país pobre a US$ 50 mil, Mianmar ficou em US$ 800.

O país tem óleo e gás, assim como recursos minerais (cobre, zinco, chumbo, pedras,
urânio), todos produtos cujos preços estiveram nas alturas nos últimos anos. Mas não
aproveitou. Sem recursos, isolado por decisão deliberada dos governantes e pelas
sanções internacionais, atraiu investimentos reduzidos, sobretudo chineses, mas também
de Hong Kong, Tailândia, Coreia do Sul e Índia. Hoje, cresce a taxas elevadas (9, 7% em 2011), mas a base econômica é precária. Falta muito.

Os bancos internacionais já começaram a preparar relatórios sobre a realidade mianmarense, o Fundo Monetário está mais presente, os Governos estão se aproximando, como fez, na semana passada, David Cameron, numa visita que teve bom destaque na mídia internacional. Oportunidades não faltarão.

Mas o quadro político ainda tem de avançar muito.

Vivendo num país que enfrenta anualmente o período de monções, o birmanês contrariando o senso comum, costuma dizer que é no teto, e não na base, que está o risco da casa. Quando chove muito, o teto vaza e põe a construção em perigo. Em outras palavras, as mudanças políticas terão de continuar a vir de cima.

Estupas de tijolo em Bagan, cidade mianmarense com cerca de 2.000 pagodes. (Andrea de Andrade Ramos/Arquivo pessoal - 1.jul.2007)

Transformar Mianmar, contudo, é tarefa muito complexa.  Quando as sanções forem suspensas, passo que depende essencialmente da visão expressa por Suu Kyi, os investidores externos virão vorazes.  Mas um país fechado há cinco décadas tornou-se ensimesmado.  O cidadão do Mianmar, budista, supersticioso, voltado apenas para a sua realidade, não absorverá rapidamente os câmbios.  Perderá o medo de se expressar, o que, por si só, é um oceano de diferença positiva,  mas terá de ajustar a sua cabeça  a um novo mundo. Tudo terá de ser feito dentro de uma ordem que ainda não é visível.  Mudanças  apressadas podem ser danosas. Mas Mianmar também precisa correr contra o tempo.  É aí que o diálogo entre o governo e os seus críticos poderá ser mais benéfico.

* Este artigo é uma versão revisitada e resumida de um artigo que escrevi há cinco anos
sobre Mianmar.

Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.

 

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Recomendações de leitura sobre a China

Por Vista Chinesa
22/04/12 09:55

Livraria anexa ao museu sobre a vida de Mao, em Shaoshan (Hunan), sua terra natal. (Fabiano Maisonnave/Folhapress - 14.mai.2011)

Fabiano Maisonnave, de Pequim

A melhor parte de cobrir a China é que tenho de ler textos fascinantes produzidos por uma legião de excelentes observadores/analistas/escritores com a atenção voltada ao país. A partir deste domingo, passo a recomendar os melhores artigos que separei ao longo da semana. A maioria será em inglês, já que, em português, o leitor está mais do que bem servido pelos colaboradores deste blog.

As sugestões deste domingo:

“The world’s most important story”. Trata-se do emocionado discurso de despedida do jornalista britânico Jon Watts, após nove anos na China como correspondente do “Guardian”. Para a sorte do Brasil, o seu próximo posto é o Rio de Janeiro, no final do mês.  Especializado em meio ambiente, Watts fez um belo resumo do que aprendeu aqui.

Lunch with the FT: Han Han. Relato da conversa do editor do “Financial Times” na Ásia, David Pilling, com Han Han, o blogueiro mais lido da China _e, por extensão, do mundo.  Um problema: o “FT” permite a leitura de um número limitado de artigos por mês sem pagar, espero que ninguém tenha excedido a cota antes de ler este texto!

 

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De entreposto Oriente-Ocidente a Las Vegas chinesa

Por Vista Chinesa
21/04/12 02:24

Por Eric Vanden Bussche, de Taipei (Taiwan)

Pode soar estranho, mas a capital mundial do jogo hoje se encontra num país socialista. Esqueçam Las Vegas ou Monte Carlo! Os magnatas norte-americanos do ramo estão todos seguindo rumo a Macau, apostando suas fichas numa cidade chinesa que até pouco tempo atrás era uma colônia portuguesa mais conhecida por ser o vizinho pobre de Hong Kong.

Desde 1999, quando os portugueses entregaram a cidade de volta aos chineses após mais de quatro séculos, Macau começou aos poucos a ostentar uma opulência (e também um kitsch) que a deixou irreconhecível.

Quando eu estive em Macau em meados do ano passado, a mudança pela qual a cidade passou durante a última década saltou aos meus olhos assim que o meu voo aterrissou. Da janela do avião, já foi possível avistar as luzes coloridas das fachadas dos novos cassinos e hotéis cinco estrelas no centro da cidade. No táxi, os letreiros enormes do Sands e do Wynn, a Louis Vuitton e as gigantescas decorações kitsch que enfeitavam o centro me deram a sensação que estava em Las Vegas em vez de Macau.

A Macau que havia conhecido em 1997 era outra cidade. Na época, os portugueses se preparavam para transferir o poder aos chineses e se estavam preocupados em deixar um legado duradouro de sua presença no Extremo Oriente.

Os portugueses se encontravam em Macau desde 1557. Nos séculos 16 e 17, a cidade prosperou ao consolidar o seu papel de importante elo comercial e cultural entre a Europa e a Ásia. Navegadores portugueses aportavam em Macau para conseguir encher suas embarcações com produtos orientais. Os jesuítas entraram na China a partir de Macau, levando consigo os seus conhecimentos científicos para a corte Qing (1644-1912). Macau também foi responsável pelos primeiros contatos entre a China e o Brasil. Navios portugueses que partiam de Macau para Lisboa eram reabastecidos em Salvador ou Rio de Janeiro, trazendo sedas, porcelanas e outros produtos da China.

Mas a perda da hegemonia portuguesa nos mares teve profundos reflexos no desenvolvimento de Macau, que testemunhou um longo período de decadência, exacerbado com a ocupação de Hong Kong pelo Reino Unido em meados do século 19. Macau passou a ser um entreposto periférico, à sombra da colônia inglesa. Diante das dificuldades econômicas na sua colônia, Portugal decidiu legalizar o jogo em Macau em 1847. Mas isso não foi suficiente para reverter o seu processo de decadência.

Após a Segunda Guerra Mundial, enquanto Hong Kong prosperava como centro comercial, Macau encontrava-se estagnada. Não foi à toa que os portugueses adquiriram a fama de administradores incompetentes, responsáveis por tornar Macau num bolsão de pobreza dominado pelo crime organizado. Essa opinião era compartilhada até mesmo por moradores portugueses. “Esses governadores que Portugal manda para cá só servem para destruir a nossa reputação”, me disse um jovem rapaz de Lisboa que morava há anos na cidade. “Agora os chineses acham que todos nós portugueses somos tão idiotas quanto o governador português!”

Os portugueses também nunca se esforçaram em difundir a sua língua e cultura entre os habitantes locais. Achar alguém que fale o português e o chinês na cidade é uma missão quase impossível. Os chineses com os quais conversei preferiam aprender o inglês por achar que a língua seria mais útil. “Aprender português não serve para nada,” disse uma universitária chinesa que conheci na praça Luís de Camões. Quando perguntei a ela se sabia quem era Camões, ela respondeu: “Talvez um velho rei de Portugal, não tenho muita certeza”.

Parece que os portugueses só entenderam que sua presença de quatro séculos em Macau havia passado desapercebida pela população local às vésperas da entrega de Macau. Nos anos 90, Portugal despendeu grandes esforços em construir um legado e limpar a sua imagem perante os macaenses. Os portugueses decidiram consolidar a ideia de que sua administração de quatro séculos em Macau, ao contrário dos ingleses em Hong Kong, fora um colonialismo “politicamente correto”, ou seja, eles não tentaram apagar a cultura local e substituí-la a força pela língua e cultura portuguesa. Nesse sentido, Macau seria um ponto de convergência entre o Oriente e o Ocidente, um forte elo entre duas grandes civilizações.

Apesar desses esforços, a população local parecia extremamente contente ao ver os portugueses se prepararem para voltar para casa. Quando voltei a Macau, em dezembro de 1999, uma semana antes da cerimônia de devolução à China, os macaenses com os quais conversei pareciam eufóricos. “Agora Macau finalmente poderá se desenvolver,” disse uma empresária. “Os portugueses personificam tudo que há de ruim em Macau: a corrupção, a incompetência administrativa. Macau irá mudar, com certeza.”
Ela estava certa, mas o estopim da mudança não foi o retorno de Macau à China.

Em 2002, o governo local resolveu não renovar a concessão do monopólio que as empresas do magnata Stanley Ho detinham sobre o ramo de jogos de azar. Essa decisão ocasionou uma profunda transformação na economia da região, abrindo as portas para bilionários norte-americanos do setor.

Em 2004, Sheldon Adelson, o sétimo homem mais rico do planeta segundo a revista “Forbes”, decidiu tentar a sua sorte e inaugurou o cassino Sands Macau. A experiência foi tão bem sucedida que, em apenas um ano, Adelson conseguiu recuperar os US$ 265 milhões que havia investido na construção do cassino.

Em 2006, foi a vez de Steve Wynn, outro magnata de Las Vegas, erguer o seu cassino. Atualmente, seus negócios em Macau são responsáveis por 66% dos lucros de sua empresa. Wynn encontra-se tão satisfeito com a sua experiência em Macau que ele está aprendendo a língua e chegou até a brincar que sua empresa não era mais norte-americana, mas chinesa.

Enquanto Las Vegas continua a sentir os efeitos da crise econômica que assola os Estados Unidos desde 2008, Macau se tornou a Meca dos cassinos, com receitas atingindo US$ 33,5 bilhões no ano passado. Atualmente, Macau possui mais de 30 cassinos, a maioria espremidos no centro da cidade, numa área de apenas 28 quilômetros quadrados, mas que ostenta uma riqueza de dar inveja a Las Vegas e Monte Carlo.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.

 

 

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Higiene e segurança dos alimentos: o que os chineses devem comer?

Por Vista Chinesa
20/04/12 10:30

 

Policiais fecham fábrica clandestina de "óleo de esgoto", feito a partir do óleo jogado fora por restaurantes, em Pequim (2.ago.2010/Divulgação)

Por Zhou Zhiwei, de Pequim

No fim de 2011, a China publicou o livro branco “Novos Progressos de Desenvolvimento e de Alívio da Pobreza nas Áreas Rurais da China”, anunciando que, após ter adotado uma série de medidas para aliviar a situação de pobreza nas regiões rurais, o país já resolveu, no geral, o problema de falta de comida e roupa aos residentes rurais e está se livrando da pobreza extrema. Tendo em vista a urbanização relativamente baixa da China (46,6% em 2010) e a pobreza concentrada nas áreas rurais, o conteúdo desse livro pode ser entendido como “a China já resolveu o problema da pobreza extrema”. Considerando a enorme população, o alívio da pobreza da China pode ser visto como uma magnífica façanha na história do ser humano.

Agora, com o problema da falta de alimentos ficando para trás, “O que comer?” e “Se come bem?” se tornam próximo foco de trabalho para o governo. Comer de forma higiênica e nutritiva obviamente é a próxima meta das políticas de alimentos do governo e um grande desafio para os chineses.

A mídia chinesa revela, quase todos os dias, uma grande quantidade de infrações cometidas pelas empresas de alimentos: a rede McDonald´s usa produtos vencidos; os supermercados mudam o prazo de validade; fabricantes de alimentos utilizam aditivos ilegalmente; os restaurantes cozinham com óleo de má qualidade; os comerciantes pequenos vendem ovos artificiais etc. Esses casos horrorosos colocam os chineses numa situação de escolha: passar fome ou se arriscar a uma comida com possíveis problemas de qualidade.

Chen Junshi, da Academia Chinesa de Engenharia projetou, com base num monitoramento ativo de doenças transmitidas por alimentos, que, em média, um em cada seis chineses morre devido a essas enfermidades. Segundo definição da Organização Mundial de Saúde, trata-se de doenças infecciosas ou tóxicas contraídas por meio da ingestão de alimentação com patógenos. Obviamente, as doenças transmitidas por alimentos não existem apenas na China _ também se encontram em outros países de desenvolvimento até em alguns países desenvolvidos.

As tecnologias nos trazem as conveniências, como os transgênicos, com os alimentos de alta qualidade, mas também nos colocam diante do grande desafio de segurança, como a produção de ovos artificiais. Ainda me lembro de que, quando estávamos a passar fome no passado, comer num restaurante era um luxo. Contudo hoje significa colocar a vida em risco. “Refeições em casa” viraram uma escolha inteligente.

Ovo falso fabricado com aditivos químicos e gelatina descoberto em Yantai (leste) (9.jan.2012/Divulgação).

Então, se não podemos recusar o avanço de tecnologias, precisamos nos esforçar para baixar o risco de outras maneiras. Em primeiro lugar, o mais importante é a ética nos negócios e a questão de integridade. A colheita de lucros dos comerciantes é uma regra universal nos negócios. No entanto os consumidores têm direito a consumir os produtos e serviços de boa qualidade. Os fabricantes que produzem comidas e serviços defeituosos devem ser criticados como imorais e castigados pela lei. Isto é, um controle tanto moral quanto da supervisão do governo.

A China tem regulações e regras relativamente rígidas em termos da segurança de alimentos, feitas com os parâmetros das normas internacionais dos Estados Unidos. Mas o problema é que a gestão e a supervisão do governo são insuficientes, o que resulta no fracasso para a implementação dessas normas. Para isso, especialistas chineses sugerem que o modelo de gestão de segurança alimentar da China deva ser transformado do modelo atual de “amostragem de mercado e revelação pela mídia”, de ação após a ocorrência, para o modelo de gestão preventiva, de “controle do começo ao fim, rastreabilidade do produto, garantia de integridade, avaliação de risco e aviso de risco”.

No último fim de semana, perguntei ao meu filho, Paulinho, de 4 anos, o que ele queria comer fora. Após ter visto tantas revelações na TV sobre a situação da higiene e segurança de alimentos da China, respondeu: “Vamos passar fome então, já que tanta comida fora é insalubre.” Fiquei chocado com a resposta. Como nós, adultos, devemos entender essas palavras de uma criança de apenas 4 anos?

 

Zhou Zhiwei é especialista em Brasil do Instituto da América Latina da Academia Chinesa de Ciências Sociais e secretário-geral do Centro de Estudos Brasileiros. Foi pesquisador visitante de relações internacionais na USP e no BRICS Policy Center da PUC-RJ. As suas principais áreas incluem estudo sintético do Brasil, política externa, estratégia internacional do Brasil, relações bilaterais e integração latino-americana.

 


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Uma conversa com Wang Shu, o novo "Nobel da arquitetura"

Por Vista Chinesa
19/04/12 02:24

Fabiano Maisonnave, de Pequim

Há muito de quixotesco no arquiteto chinês Wang Shu: em meio à rápida, inédita e, sob vários aspectos, violenta urbanização chinesa, ele oferece um contraponto por meio de projetos relativamente pequenos e distantes de Pequim e Xangai que levam anos para serem construídos. Em vez de vergalhões, usa bambu; para o lugar de mármore importado, restos de construções demolidas. Golias e Davi. Não é à toa que o seu escritório em Hangzhou, tocado com a mulher e meia dúzia de assistentes, chama-se Amateur.

No início do ano, Wang Shu, 48, foi homenageado com o Pritzker, prêmio máximo da arquitetura mundial. Semanas depois, numa entrevista à Folha (publicada originalmente na Ilustrada e disponível para assinantes aqui), ele fez uma análise sombria do processo de urbanização que ainda deve assentar mais 300 milhões de chineses nas cidades durante os próximos 20 anos.

Como a gravamos em vídeo, coloco a entrevista aqui praticamente na íntegra, em mandarim com legendas em português (é preciso ativar o botão cc do Youtube, no canto inferior à direita). Em dois anos na China, foi uma das raras vezes em que senti que o entrevistado realmente falava o que pensa. A edição do vídeo é de Paula Ramón.

 


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O papel da China na democratização de Mianmar

Por Vista Chinesa
13/04/12 12:16

Mianmarenses protestam contra hidrelétrica financiada pela China diante da embaixada do país na Malásia (22.set.2011).

Por Eric Vanden Bussche

Há menos de um ano, Mianmar (antiga Birmânia), no Sudeste Asiático, era um dos países mais isolados do mundo, governado com mão-de-ferro por um regime autoritário desde 1962 e sofrendo há décadas com as sanções econômicas impostas pelo Ocidente. Em meados de 2011, porém, o presidente birmanês Thein Sein _considerado até então um fantoche dos militares_ surpreendeu o mundo ao dar início a um rápido processo de democratização, libertando mais de 200 presos políticos, relaxando a censura aos meios de comunicação e abrindo o diálogo com a líder da oposição, a prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. A visita da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, a Mianmar, em dezembro de 2011, e as eleições legislativas no início deste mês (vencidas com folga pelo partido de Aung San Suu Kyi) representaram passos significativos na veloz transição de um regime opressivo a uma democracia.

Pode soar estranho, mas a China foi a grande responsável por essa recente democratização de Mianmar. Durante as últimas duas décadas, as sanções econômicas impostas pelo Ocidente corroeram a economia do país, ampliando a dependência de Mianmar na China. Entretanto, os crescentes investimentos chineses no país passaram a inquietar o regime birmanês, preocupado que o aprofundamento dos laços permitirá à China exercer considerável influência nos rumos do país.

O processo de democratização deve ser enxergado nesse contexto. Por meio das reformas, o governo birmanês espera ensaiar uma aproximação com o Ocidente para poder frear o avanço da China na região. Não foi coincidência que a abertura política no ano passado tenha coincidido com a suspensão de um projeto chinês para a construção de uma hidrelétrica no rio Irrawaddy, a principal via fluvial do país.

As relações entre a China e Mianmar sempre foram marcadas por profundas tensões. Há séculos os chineses cobiçam os recursos minerais de seu vizinho e se esforçam para expandir a sua esfera de influência sobre o país.

Embora a dinastia Qing (1644-1911) considerasse Mianmar um reino tributário, os imperadores em Pequim tiveram dificuldade em subjugá-lo. A corte Qing também enxergava a região fronteiriça entre a sua província de Yunnan e Mianmar _rica em minérios_ como uma das mais instáveis de seu império por possuir um terreno geográfico acidentado e ser habitada por poderosas tribos de diversas etnias que conseguiam escapar ao controle do estado. Não foi por acaso que o desgastante processo de delimitação de fronteiras entre Mianmar e a China, que teve início no final do século 19, perdurou durante 70 anos até ser finalmente resolvido em 1960.

Os atritos aumentaram durante a Guerra Fria. Quando os comunistas conquistaram o poder, em 1949, alguns batalhões do exército nacionalista de Chiang Kai-shek se refugiaram no norte de Mianmar e, com o apoio da CIA, lançaram uma tentativa fracassada de reconquista da China no início da década de 50. Isso foi um dos motivos que levaram Pequim a forjar alianças com diversos povos no norte de Mianmar, suprindo-os com armamentos para garantir os seus interesses na região. Essa iniciativa obviamente incomodou o regime birmanês, pois esses povos reivindicavam maior autonomia e se encontravam em conflito com o exército birmanês.

O dedo de Pequim em Mianmar era fonte constante de disputas politicas entre a junta militar que governava o país, pois não havia um consenso sobre como lidar com o peso da China no Sudeste Asiático. A questão ganhou maior relevância a partir dos anos 90. Além das sanções do Ocidente, o regime chinês consolidou o comércio na fronteira e ampliou os seus investimentos na extração de minérios e recursos energéticos no país. O projeto chinês de construção da usina hidrelétrica no Rio Irrawaddy, suspensa em setembro do ano passado pelo presidente birmanês, Thein Sein, ilustra as ambições chinesas na região. Além dos prejuízos ambientais e comerciais aos habitantes na bacia do Rio Irrawaddy, 90% da energia produzida seria destinada à Província chinesa de Yunnan.

O jornalista Bertil Lintner, especialista em Sudeste Asiático, assinala que desde o início dos anos 90, uma ampla gama de produtos chineses baratos, de rádios a cigarros, passou a inundar o país, ocasionando uma balança comercial claramente favorável à China. Ele mostra que, em 2009, as exportações chinesas ao Mianmar alcançaram US$ 2,3 bilhões, mas as importações não passaram de míseros US$ 646 milhões. Lintner adverte que o aumento vertiginoso de comerciantes chineses em cidades como Mandalay durante os últimos anos e dos projetos de infraestrutura financiados por Pequim passaram a nutrir um forte sentimento nacionalista entre a população e agravaram as tensões entre as facções da junta militar. Talvez a abertura política e a aproximação com o Ocidente sirvam para atenuar os ânimos.

Os chineses estão reagindo às manobras do regime birmanês com cautela. Após a suspensão da construção da usina hidrelétrica no rio Irrawaddy, as empresas chinesas responsáveis por projetos de infraestrutura na região entenderam a necessidade de melhorar a imagem de seu país perante a população local e passaram a compensar de forma mais generosa as comunidades afetadas por suas obras. Pequim, embora preocupada com as reformas, adotou uma posição favorável às mudanças em curso.

Logo após as eleições parlamentares, a agência de notícias oficial Xinhua enfatizou que a China enxergava com bons olhos o fim das sanções econômicas. O website do governo da Província de Yunnan, que faz fronteira com Mianmar, assinalou que as eleições parlamentares do início de abril servirão para fortalecer a confiança mútua nas relações bilaterais, mesmo que ocorra uma troca do governo no futuro próximo.

Entretanto os alertas de acadêmicos e jornalistas chineses para uma maior influência dos EUA e Europa no país revelam uma ansiedade de Pequim com a nova realidade no Mianmar, que certamente ocasionará mudanças nas relações sino-americanas e na geopolítica da região.

 

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.
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A batalha pela competitividade

Por Vista Chinesa
12/04/12 18:04

Protesto de sindicalistas contra política industrial, em Brasília ( Pedro Ladeira - 3.abr.2012/France Presse)

 

Por José Carlos Martins, de Brasília

Peço licença aos leitores para aproveitar o tema palpitante da competitividade e da desindustrialização, tão presente no momento econômico, para me debruçar sobre essa questão sob a ótica brasileira. Achei oportuno fazer isso neste blog por duas razões. A primeira é o fato de as exportações chinesas para o Brasil e para outros mercados anteriormente dominados pelas exportações brasileiras serem parcialmente apontadas como responsável pela desindustrialização do país. A segunda razão é o fato de que as transformações ocorridas na economia mundial que vêm causando profundas mudanças no fluxo de comércio mundial terem seu epicentro na China.

Nas últimas semanas, temos assistido a uma série de iniciativas do governo brasileiro para aumentar a competitividade da indústria e de produtos brasileiros supostamente ameaçados pelo fenômeno da desindustrialização e pela competição com produtos estrangeiros, principalmente chineses.

Essas medidas de cunho tarifário, fiscal e creditício tentam responder aos clamores dos setores mais afetados pela competição bem como encontrar soluções para os problemas diagnosticados pelos órgãos do governo responsáveis pela política econômica e industrial.
Embora na direção correta e bem intencionadas, essas medidas trarão pouco resultado para o aumento da competitividade dos produtos industriais brasileiros. Correm o risco de serem efêmeras e ao mesmo introduzir outras distorções que terão de ser corrigidas no futuro. Elas precisam ser acompanhadas de medidas que realmente lidem com os problemas estruturais que afetam a competitividade da nossa indústria, aquilo que costumamos chamar de “custo Brasil”.

Esses problemas de competitividade estrutural sempre estiveram presentes na nossa economia, mas eram encobertos pela inflação desenfreada, pela desvalorização artificial da nossa moeda e por tarifas de importação proibitivas que por décadas protegeram a nossa indústria da competição externa e tornaram nossos produtos mais competitivos no mercado externo.

A administração da relação cambio-salário, chamada por alguns economistas de “competitividade espúria”, pois tinha como contrapartida o empobrecimento dos trabalhadores brasileiros, associada a tarifas de importação punitivas, eram as principais ferramentas de política industrial adotada por muitos governos brasileiros desde a década de 1970.

É dessa época uma das passagens quase cômicas do nosso folclore econômico empresarial, o enunciado da famosa Lei de Sauer, ex-presidente de uma grande indústria estrangeira no Brasil. Mestre no “lobby” pela desvalorização do cambio, dizia que em qualquer momento o cambio estaria sempre defasado em 30%!

Nos últimos anos, com a estabilidade econômica, maior abertura da economia, liberalização da política cambial, redução das alíquotas de importação e mudanças estruturais na economia mundial, ficou mais difícil a utilização do câmbio como fator de ajuste para a competitividade da indústria brasileira. E o rei ficou nu!

As razões para valorização do câmbio são várias e as mais mencionadas por empresários e governantes têm sido a “doença holandesa”, a “guerra cambial” e o “tsunami monetário”.

A “doença holandesa” decorre da valorização dos produtos primários, matérias-primas e alimentos exportados pelo Brasil. Isso traz um “tsunami” de dólares para o país e valoriza a nossa moeda, prejudicando a indústria. Infelizmente (ou felizmente) há pouco a fazer em relação a isso, pois os preços desses produtos são definidos pela oferta e procura no mercado internacional. E é muito positivo que países produtores de matérias-primas e alimentos sejam finalmente beneficiados por preços melhores.

Historicamente, esses países sempre foram prejudicados seja pela exploração colonial seja pelo aviltamento dos seus preços em relação aos produtos industriais produzidos pelas nações mais desenvolvidas.  Esse fenômeno foi muito bem descrito pelo governador Leonel Brizola como a principal razão dos problemas econômicos do Brasil e denominado “perdas internacionais”.

Similarmente, a “deterioração dos termos de intercâmbio” foi chamada como a principal fonte do subdesenvolvimento das nações de industrialização tardia, como o Brasil, pelos economistas estruturalistas cepalinos e pelos teóricos da relação centro-periferia. Portanto, a reversão das “perdas internacionais” e da “deterioração dos termos de intercâmbio” é extremamente positivo para economia brasileira, e não negativo, como querem fazer crer alguns setores empresariais.  O Brasil estaria obtendo preços melhores pelos produtos que exporta e adquirindo os produtos que importa a preços menores. Fica difícil achar que isso seja negativo para o nosso país e para os brasileiros, que têm hoje acesso a bens que jamais puderam ter no passado.

Chamar esse fenômeno virtuoso de valorização dos nossos produtos como doença é um pouco exagerado. A tendência de valorização dos preços dos produtos primários (matérias-primas e alimentos) produzidos pelo Brasil é irreversível, consequência de uma mudança no padrão de crescimento da economia mundial que nos favorece e não há muita coisa que possamos fazer para evitá-lo.

Aliás, o preconceito contra a exportação de produtos primários de menor valor agregado reflete o padrão antigo de deterioração dos termos de intercâmbio. Nos últimos dez anos, os produtos primários vêm sendo cada vez mais valorizados no mercado internacional, enquanto a enxurrada de produtos industrializados provenientes da China deprime os preços desses produtos, tornando a competição muito mais difícil, mesmo para países mais avançados tecnologicamente. Independentemente do valor agregado na produção, as forças de mercado têm feito o valor econômico migrar dos produtos industrializados para os produtos primários, e a China tem tudo a ver com isso!

Um país exporta mais aquilo que é mais competitivo, e o crescimento dos produtos primários nas exportações brasileiras reflete a maior competitividade desses produtos. Não obstante os problemas de competitividade enfrentados pela indústria brasileira, a queda de participação relativa do produto industrial na composição do PIB é mais consequência do grande crescimento dos preços dos produtos primários do que da queda absoluta do produto industrial.

Ao mesmo tempo, o desemprego no Brasil se reduziu a níveis recordes e o subemprego também, tanto assim que o exército de empregadas domésticas e babás a serviço da classe média brasileira diminuiu de forma tão acentuada que um famoso economista, verdadeiro mago na gestão da competitividade espúria da relação cambio-salário em seus tempos de ministro, indicou essa classe laboriosa para compor na relação dos “animais em extinção” publicadas regularmente pelo Ibama: “Quem teve, teve, quem não teve, não terá mais”!

A guerra cambial, movimento pelo qual algumas nações desvalorizam artificialmente suas moedas para aumentar sua competitividade, é uma prática soberana; o Brasil fez isso durante grande parte da sua história econômica mais recente. Mas nenhum país consegue fazer isso impunemente. Ou terá de destinar parte de seu superávit fiscal (nesse caso precisará tê-lo) para compra de dólares, o que é perfeitamente defensável do ponto de vista econômico, ou pagará com inflação e empobrecimento de sua população emitindo moeda local para mantê-la desvalorizada. Também aqui não há muito a fazer senão entrar no mesmo processo, gerando inflação uma vez que há muitos anos não temos superávit fiscal para sustentar essa estratégia impunemente.

Por fim, temos o tsunami monetário, causado pelas nações desenvolvidas e profundamente endividadas, o famoso “quantitative easing”. Essas nações se aproveitam da força, tradição e conversibilidade de suas moedas para emiti-las em profusão, buscando de um lado quitar parte das dívidas impagáveis acumuladas por alguns países desenvolvidos e de outro estimular suas economias combalidas. Dólares americanos, libras esterlinas, euros, francos suíços e ienes japoneses são emitidos em profusão, tanto para quitar as dívidas acumuladas como para contrapor a movimentos especulativos do mercado, ou seja, para estimular suas economias. Além de alterar o valor relativo dessas moedas, parte desse fluxo monetário migra para países como Brasil, que representa melhor alternativa de investimento, aprofundando o processo de valorização da nossa moeda.

Por outro lado, temos de considerar o fato que, se esses países não agissem dessa maneira, o aprofundamento da crise financeira nos países industrializados seria muito mais grave e afetaria indiretamente os outros países, inclusive o Brasil. Ruim com o tsunami monetário, pior sem ele!

Pelo exposto, fica evidente que temos pouca margem de manobra para administrar a questão cambial, pois ela é fruto de movimentos mundiais sobre os quais temos pouca ou nenhuma influência.

Portanto, só temos como opção enfrentar a questão do custo Brasil, esse inimigo solerte da competitividade da indústria brasileira. O custo Brasil resumidamente é a competitividade sistêmica da nossa economia. Enquanto a competitividade dos produtos primários é sustentada basicamente pelas vantagens comparativas ditadas pela natureza (existência de jazidas minerais de alta qualidade, condições climáticas e de solo favoráveis, recursos hídricos, insolação), a competitividade dos produtos industrializados depende da competitividade sistêmica ou adquirida. A competitividade sistêmica ou adquirida depende de políticas governamentais de longo prazo e também da engenhosidade e criatividade dos empresários locais.

Nesse particular, gostaria de traçar algumas comparações entre alguns fatores de competitividade sistêmica da economia brasileira comparativamente a economia chinesa, o que ajudaria explicar a assimetria competitiva entre os dois países.

Começamos pela mão de obra, que no Brasil é de duas a três vezes mais cara que na China. De um lado, temos uma legislação trabalhista muito mais rigorosa no Brasil em relação à China, mas o custo de vida na China é muito mais baixo que no Brasil. Uma comparação entre São Paulo e Xangai indica que o custo de vida na China é apenas 40% do custo no Brasil, e isso tem uma grande influência no nível de remuneração.

O nível escolaridade e de produtividade na China é maior do que no Brasil. Atribua-se isso à cultura confucionista ou à rigidez do sistema político chinês, o fato é que a mão obra chinesa é mais competitiva que a nossa.

Outro fator importante é a infraestrutura chinesa: estradas de ferro, estradas de rodagem, aeroportos, portos, saneamento básico, rede de distribuição de energia, sistema de transporte e comunicações. A China tem salário de país subdesenvolvido e infraestrutura melhor que muitos países desenvolvidos, e o custo de energia na China, embora não esteja entre os menores do mundo, é menor do que no Brasil e bastante competitivo internacionalmente.

As empresas que se instalam na China olham não apenas a competitividade para exportar mas também o tamanho do mercado interno em crescimento. Além dos fatores de competitividade sistêmica, temos a escala do mercado altamente atrativa. Hoje, a China é o maior mercado mundial de automóveis e de computadores, e a cada dia que passa vai se tornando o maior mercado mundial para outros produtos industrializados. Vantagens sistêmicas associadas à escala de mercado dão à China uma permanente vantagem não só sobre o Brasil mas também sobre outras nações industrializadas do mundo.

A China investe 50% do PIB, grande parte em infraestrutura. O Brasil investe apenas 20% do PIB, a menor parte em infraestrutura. Os gastos do setor público na China somam 13% do PIB, e no Brasil, 21%. Já a carga tributaria na China representa 23% do PIB, grande parte dela destinada ao investimento público, enquanto no Brasil a carga tributária chega a 34% do PIB praticamente toda ela consumida pela máquina pública e pelo serviço da dívida.

O Brasil tem carga tributária de país desenvolvido sem ter o mesmo nível de serviço e de cobertura social desses países. Nosso Estado retira da economia mais do que devolve em bens e serviços, e essa é a natureza central do custo Brasil, que vai se refletir indiretamente na competitividade das nossas empresas, principalmente daqueles setores que dependem exclusivamente da competitividade sistêmica.

O sistema político e econômico da China, sua cultura, seu povo sua história são diferentes dos nossos. Cada país é soberano para escolher seu caminho e nem sempre é possível emular modelos. Assim como não foi possível copiar o modelo americano ou europeu, não será possível ao Brasil copiar o modelo chinês. Mas, no mundo da competição global, cada país tem de encontrar seu caminho para competir em igualdade de condições, compensando suas deficiências com suas forças sob pena de ficar para trás no desenvolvimento econômico e social, este o objetivo primordial de toda nação.

O momento é de grande transformação e de ação, me fazendo lembrar aquele clássico de Bob Dylan, “The times hey are a-changing” que dizia em um dos seus trechos “and admit that the water around you have grown…then you better start swimming or you will sink like stone!”. Em português castiço, as águas estão subindo e é melhor você começar a nadar ou vai afundar como uma pedra!

Neste bravo novo mundo da globalização, não somente as empresas competem entre si, mas os Estados nacionais também. E seja por fatores culturais, políticos ou mesmo econômicos, a China tem se mostrado mais competitiva que o Brasil.

José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Excepcionalmente, nesta semana foi publicada na quinta-feira.

 

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O diabo veste Prada

Por Vista Chinesa
09/04/12 10:53

Por Marcos Caramuru de Paiva, de Xangai

Basta sair às ruas numa grande cidade para entender que o mercado de luxo tem o seu grande momento na China. Só na região central do lado de Puxi, em Xangai, há cinco lojas do Gucci, algumas com vários andares e dimensão física de um shopping. Mas não é só nos centros famosos que a coisa ferve. A Burberry, que tem 50 lojas no país, planeja abrir mais 100 em cinco anos. Quer ter seus vendedores na crista da tecnologia, carregando iPads individuais, mostrando aos clientes desfiles de moda e modelos com sua produção. O Prada planeja abrir mais 50 lojas em três anos. O Louis Vuitton está em 30 cidades e continua a crescer, sendo que a holding à qual está vinculado, o grupo LHVM, agora é socio da construção de um grande shopping center numa área rica xangainesa: o L’Avenue. Esses são apenas alguns exemplos. Os números são todos de cair o queixo.

A China é hoje o segundo maior mercado de bens de luxo no mundo. Compra 25% do que é vendido. O mercado no país deve crescer 18% até 2015, alcançando um valor de vendas de US$ 27 bilhões. Mas, ao lado disso, os chineses absorvem cerca de 47% dos bens de luxo vendidos na Europa e nos Estados Unidos. Ou seja, quem não for visível na China não vende em casa.

O comprador do luxo chinês tem características especiais. Três quartos têm menos de 35 anos (contra apenas um quarto no mundo ocidental). Vale lembrar que os milionários chineses têm, em média, 15 anos menos do que os europeus ou americanos. Um jovem profissional de classe média gasta até 40% de sua renda com bens de luxo. Os homens compram 45% do que é vendido, inclusive bolsas, sendo que, a depender da marca, essa percentagem pode subir para 70%. Homens chineses, diz-se, carregam frequentemente bolsas não só pelo modismo mas porque aqui se utiliza muito o dinheiro em espécie para pagamentos. A bolsa é necessária para guardar grandes maços de notas.

O professor Xiao Lu, no seu livro “Elite China: Luxury Consumer Behavior in China” (China elite: o comportamento do consumidor de luxo na China) explica que o gosto pelo luxo não é novo por aqui. Desde tempos ancestrais esteve presente na vida não só dos aristocratas mas também dos acadêmicos e burocratas. Ele lembra que, na dinastia Sui (581-617 a.C.), instituiu-se o concurso público de modo a atrair para o governo gente com cultura e que os burocratas sempre cultivaram com competência a arte de bem viver. Suas mulheres usavam figurinos apuradíssimos, penteados para lá de exóticos, os homens jogavam polo, havia um apreço geral pelo supérfluo.

Na prática, o receituário da expansão do luxo é até simples. Abre-se um novo shopping, vaga uma loja numa área elegante das cidades, e o espaço é rapidamente tomado como por exército em batalha pelos três grandes grupos que dominam boa percentagem do mercado.
O LVMH, que, além de muitas outras marcas, é dono da Celine Donna Karan, Bulgari, Loewe, Kenzo, Marc Jacobs, Pucci, Fendi, Givenchy e Chaumet e tem uma vinculação societária com a Christian Dior . O Richemont, dono da Dunhill, mas forte, sobretudo, nas jóias, engloba Cartier, Van Cleef, Piaget, Vacheron e Jaeger le Coutre. Já o grupo PPR controla Gucci, Bottega Veneta, YSL, Balenciaga e tem cooperação com Stella McCartney e Alexander McQueen.
Só aí vão-se dois ou três andares de qualquer shopping, sem contar Hermès, Burberry, Prada, os vários Armanis, Zegna, Ralph Lauren, Calvin Klein e tantas outras marcas que entram na disputa. Para as marcas menos conhecidas ou que querem penetrar no mercado, sobra muito pouco lugar onde se instalar.

Os próprios shoppings querem os grandes nomes antes de quaisquer outros e não lhes fazem tantas exigências como às demais marcas. Uma marca nova pode pagar em Xangai de US$ 8 a US$ 11 por metro quadrado por dia ocupado ou pode ser demandada a transferir para o shopping até 25% de sua receita bruta mensal, o que for maior (aluguel ou receita). Ou seja, até se firmar, tem de vender muito para poder operar no lucro. As lojas de rua podem chegar a preços astronômicos. Mas os grandes podem pagar. Sua receita é alta, e os mercados asiáticos lhes aportam recursos em grande volume. O grupo Prada, por exemplo, anunciou que seus ingressos na China aumentaram 40% em 2011, ano em que levantou US$ 2,1 bilhões numa oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) na Bolsa de Hong Kong.

Toda a história chinesa com os bens de luxo, além de interessante, contém uma lição e um alerta para nós. O Brasil está enriquecendo. Os consumidores brasileiros das grandes marcas de luxo mundiais já se fazem notar em toda parte e essas marcas já começaram a se expandir no nosso próprio mercado. Muitas das marcas brasileiras hoje fortes terão grandes competidores em casa. Como a desproporção entre o volume de recursos disponíveis para os grandes nomes estrangeiros e os bons nomes brasileiros é grande, há alta probabilidade de que nossas marcas comecem a perder espaço, sejam deslocadas das áreas mais nobres dos shoppings, dos melhores endereços de rua. Ou seja, para as boas marcas brasileiras sobreviverem bem e não perderem o jogo em seu próprio campo, será necessário também se internacionalizar. E, sobretudo aquelas que já conquistaram espaço em Nova York, Paris ou Tóquio, terão inevitavelmente de se voltar para a China.

Um programa da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos) de incentivo à internacionalização de boas marcas, apoiado por uma linha de financiamento do BNDES, me parece, dadas as circunstâncias, urgente. Até porque, para começar a operar na China, abrir uma firma, encontrar espaços corretos, montar uma estratégia de imagem é esforço que leva pelo menos um ano. Depois do primeiro passo, um de plano expansão pode até dar resultado rápidos. Mas não será menos desafiador.

Marcos Caramuru de Paiva, diplomata, é sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai, e vive há oito anos no Leste Asiático. Foi cônsul-geral do Brasil em Xangai, embaixador na Malásia, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Banco Mundial, em Washington. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias.

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A crescente influência política dos Brics

Por Vista Chinesa
04/04/12 16:59

Por Zhou Zhiwei, de Pequim

A reunião de cúpula dos Brics, em Nova Déli, foi o evento mais notável da semana passada. Desde a invenção do termo “Bric”, em 2001, passou-se de um conceito puro de investimento a um processo de transformação rumo a um mecanismo de cooperação multilateral, com impacto crescente nos âmbitos político e econômico. O mundo não esperava esse fenômeno, incluindo o inventor desse termo, Jim O´Neil, e mesmo os países Brics. Nos países ocidentais tradicionais, esse novo mecanismo provocou reações de confusão e até de terror.

Desde a invenção do termo “Bric”, foram oito anos até a primeira cúpula dos Brics em 2009. E, nos três anos seguintes, o mecanismo dos Brics se formou e se desenvolveu para se tornar um poder emergente, exercendo grande impacto no antigo sistema internacional. Quais são os fatores que têm promovido o desenvolvimento rápido desse mecanismo?

Em primeiro lugar, a maioria dos países Brics (exceto a Rússia) conta com uma tradição diplomática de cooperação com os países Sul-Sul. Como países emergentes e países maiores em desenvolvimento, as conexões entre esses países Brics fazem parte importante nas suas próprias estratégias envolvendo a cooperação com os países Sul-Sul.

Em segundo lugar, a transformação do padrão internacional acelerou o processo de cooperação interna dos países Brics. A crise financeira de 2008 é um fator importante, que tem contribuído na formação do mecanismo dentro dos Brics. A cooperação tem como objetivo promover a economia dos países Brics e contribui para a formação da nova ordem internacional (multipolarização).

A cooperação e a coordenação entre os Brics nos últimos anos vêm tendo efeitos positivos, tais como a reforma do FMI e do Banco Mundial e a posição unânime sobre a criação da “zona de exclusão aérea” na Líbia.

Esses fatos demonstram que os países Brics compartilham os interesses e as aspirações e podem se unir e se posicionar em bloco em eventos internacionais, refletindo, ao mesmo tempo, o valor diferente de cada membro. Por isso, os cinco membros dos Brics estão com uma atitude cada vez mais positiva com relação ao mecanismo de cooperação.

Na cúpula em Nova Déli, o que se destacou foi o mecanismo de cooperação financeira: expansão dos negócios de liquidação em moeda local e da escala de negócios de empréstimo, construção do banco dos Brics e ampliação de contatos entre as bolsas de valores dos membros, tudo para oferecer mais conveniências à cooperação interna dos Brics. As cooperações financeiras entre os países-membros podem não apenas trazer os avanços econômicos para os membros mas também ajudar a economia global a sair do atual estado sombrio. O banco dos Brics está procurando um novo modelo de desenvolvimento sustentável para o mundo. Comparando com as maiores instituições mundiais _o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial_ o banco dos BRICS, possivelmente, assistirá os países em desenvolvimento na área de construção de infraestrutura, de inovação tecnológica, de higiene e medicina e de eliminação da pobreza, oferecendo investimentos e assistência mais específicos sem pré-requisitos.

Essa tendência reflete, em certo grau, a insatisfação dos Brics com o fato de que os Estados Unidos e a Europa dominam os postos de líderes das duas maiores instituições financeiras do mundo há muito tempo.  Também demostra que esse grupo se possui uma capacidade de ser cada vez mais autossuficientes.

Contudo não se pode negar que o banco dos Brics ainda é uma idéia, cujo movimento estará relacionado não apenas com o problema de financiamento mas também com a seleção do objetivo de assistência e da área de investimento e a cooperação com outras instituições financeiras. Portanto, a construção desse banco demanda mais tempo. Mas esse passo inicial já ilustra a resolução e a força dos Brics na participação dos assuntos globais.

Os Brics ainda não são uma aliança política. Mas, como esses membros são emergentes regionais, a cooperação entre eles se disseminará para áreas de política, segurança e gestão global. A discussão sobre a situação da Oriente Médio e do norte da África na cúpula de Nova Déli refletiu essa tendência. Na futura discussão sobre a gestão global, os países BRICS, possivelmente, formarão uma nova força, diferente dos grupos de países desenvolvidos ou de países em desenvolvimento. Os Brics já começam a mostrar na cúpula de Nova Déli os “músculos” políticos do seu mecanismo.

Zhou Zhiwei é especialista em Brasil do Instituto da América Latina da Academia Chinesa de Ciências Sociais e secretário-geral do Centro de Estudos Brasileiros. Foi pesquisador visitante de relações internacionais na USP e no BRICS Policy Center da PUC-RJ. As suas principais áreas incluem estudo sintético do Brasil, política externa, estratégia internacional do Brasil, relações bilaterais e integração latino-americana
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É preciso mudar o debate sobre o Tibete

Por Vista Chinesa
30/03/12 12:02

Soldados chineses e monges tibetanos em Yushu, cidade de maioria tibetana devastada por terremoto. Militares e religiosos trabalharam na atenção às vítimas sem colaborarem entre si. (Fabiano Maisonnave - 16.abr.2010/Folhapress)

Por Eric Vanden Bussche, de Pequim

A morte de um tibetano, que ateou fogo ao próprio corpo no início da semana durante um protesto contra a China em frente ao parlamento indiano em Nova Déli, colocou novamente o Tibete no centro das atenções da mídia internacional. Sua autoimolação, dois dias antes da chegada do presidente chinês Hu Jintao à Índia para uma reunião dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), faz parte de uma nova onda de protestos contra o controle do regime chinês sobre o Tibete.

O Tibete continua sendo uma questão espinhosa para Pequim, tanto na esfera doméstica quanto internacional. Encontrar uma solução que satisfaça tanto os chineses quanto os tibetanos será difícil, em grande parte graças ao abismo que separa os desejos de ambos os lados. Os exilados tibetanos almejam a independência ou pelo menos uma maior autonomia política, algo que o regime chinês não aceitaria. Para mim, o impasse somente será superado se ambos os lados atualizarem a sua postura em relação ao Tibete, levando em consideração as transformações em curso na região nas últimas duas décadas.

Durante anos, os chineses e os tibetanos se amparam na história para provar que o Tibete fazia ou não parte da China antes da revolução comunista de 1949. Os tibetanos apontam para a sua autonomia política e relações internacionais durante o período republicano (1912-1949) para enfatizar que a independência de sua nação. Em 2003, a descoberta de um passaporte tibetano no Nepal emitido naquela época pelo 13º Dalai Lama ao então ministro das finanças do Tibete, Tsepon Shakabpa, reforçou tal argumento, já que também contém vistos de vários países, entre eles o do Reino Unido.

Os historiadores chineses, porém, refutam esse argumento, lembrando que várias partes da China gozavam de certa autonomia política durante o período republicano, mas ainda eram consideradas parte do país pelos líderes chineses. Os acadêmicos na China preferem basear as suas interpretações em documentos da dinastia Tang (618-907), que, segundo eles, provam que o Tibete reconhecia a suserania do imperador chinês. Eles também lembram que o Tibete era parte do império Qing (1644-1912), a última dinastia que reinou sobre a China.

Essa narrativa é questionada por historiadores norte-americanos, que preferem caracterizar o Tibete como “colônia” do império Qing. Também não é possível partir do pressuposto de que os imperadores da dinastia Tang ou Qing (1644-1911) definiam os conceitos de suserania e soberania da mesma forma que os líderes políticos dos Estados nacionais da atualidade.

Fica claro, então, que, dependendo da maneira como interpretarmos a história, é possível mostrar que os argumentos de ambos os lados podem ser facilmente refutados. Por isso, é necessário deixarmos de lado o debate histórico para prestarmos atenção no cenário atual.
Nesse sentido, os protestos que eclodiram no Tibete em 2008 revelaram a necessidade de mudarmos o foco do debate.

Pela primeira vez desde que a China “reincorporou” (ou “invadiu,” dependendo com quem você conversar) o Tibete em 1950, os tibetanos protestaram nas ruas motivados por frustrações econômicas e não tanto políticas. Os participantes não eram apenas acadêmicos, estudantes ou religiosos, mas incluíram também outro segmento importante da população tibetana: aqueles que se sentiam marginalizados no processo de desenvolvimento econômico das últimas décadas.

Essa parcela da população enxerga os migrantes chineses no Tibete como os únicos que colhem os frutos dos investimentos de Pequim na região. Não foi por acaso que estabelecimentos de comércio chineses se tornaram os alvos preferidos dos manifestantes.

Tais frustrações já eram aparentes quando visitei o Tibete há dez anos. Na praça central da capital tibetana de Lhasa, próxima ao Palácio Potala _antiga residência do Dalai Lama_ há uma luxuosa casa de chá. Nas duas vezes em que passei por lá, percebi uma clientela composta inteiramente por chineses han (etnia de 94% da população do país) sendo servida por tibetanos em trajes que lembravam a dinastia Tang. Um dos garçons, que falava um mandarim com forte sotaque tibetano, enxergava a casa de chá como um retrato das problemáticas relações entre os chineses e tibetanos: “Se quiser saber a situação [social e econômica] do Tibete, basta olhar a sua volta. Aqui nós tibetanos servimos os han. É a mesma coisa por todo o Tibete. Não é justo e espero que mude um dia”.

Os protestos de 2008 tornaram aparente o problema da desigualdade econômica no Tibete, desafiando a estratégia do governo chinês na região. Quando Deng Xiaoping consolidou o seu poder no final dos anos 70, ele começou a esboçar um novo plano para as regiões fronteiriças da China com ênfase no desenvolvimento econômico e na difusão da cultura tibetana. Deng e os seus sucessores acreditavam que uma melhoria de vida da população facilitaria o controle da região.

De acordo com a agência oficial de notícias Xinhua, o governo chinês investiu mais de R$ 83,1 bilhões no Tibete desde 2001, a maior parte em projetos de infraestrutura, como rodovias e a estrada de ferro Qinghai-Tibete, que liga a região ao resto da China. Até 2016, Pequim pretende gastar mais R$ 39 bilhões em infraestrutura.

Os investimentos maciços de Pequim, entretanto, beneficiaram apenas uma fração da população tibetana, segundo o economista da London School of Economics, Andrew Martin Fischer. Em entrevista à revista “The Economist” algumas semanas após os protestos de 2008, Fischer assinalou que o setor de educação recebeu apenas 6% do total de investimentos de Pequim, uma parcela insuficiente se considerarmos que 45% da população é analfabeta. Segundo o economista, a falta de fluência no mandarim continua sendo um dos maiores obstáculos à ascensão social dos tibetanos. Além disso, as condições no campo continuam precárias. Apesar da previsão do presidente Hu Jintao de que a renda média anual dos agricultores tibetanos atingirá o mesmo patamar que a média nacional no setor até 2020, muitos economistas consideram essa meta difícil de ser alcançada.

Na capital, Lhasa, os chineses que migraram para a região encontram-se entre os maiores beneficiados pelo crescimento econômico do Tibete. São eles que controlam os estabelecimentos comerciais na cidade. Mesmo assim, houve o surgimento de uma pequena classe média urbana de tibetanos nas últimas duas décadas, que nutre um sentimento ambíguo pela China. Se por um lado muitos deles gostariam que o Tibete gozasse de maior autonomia política e religiosa, por outro eles enxergam a China como o motor responsável pelo desenvolvimento econômico da região.

Quando estive no Tibete, uma tibetana me contou que pretendia enviar a sua filha para estudar em Chengdu, na Província de Sichuan no centro-oeste. “Só assim ela irá ter mais oportunidades,” me explicou. “Por isso, não sou favorável à independência do Tibete. Se nos tornarmos independentes, poderemos fazer o que quisermos, mas nossos filhos não terão mais a oportunidade para melhorar de vida.”

Infelizmente, a maioria dos chineses ainda enxerga os tibetanos de forma paternalista. Para eles, o Tibete é uma região atrasada em termos econômicos e culturais que nunca irá prosperar sem a orientação de Pequim. Essa mentalidade moldou a reação dos chineses durante os protestos de 2008. “Por que os tibetanos estão matando os chineses e queimando as suas lojas?” perguntou um internauta anônimo. “Sem nós, eles ainda seriam uma sociedade feudal.” Muitos internautas acusaram os tibetanos de serem ingratos. “Devemos parar de investir tanto dinheiro no Tibete,” escreveu outro. A cobertura dos protestos pela mídia chinesa _que mostrava imagens da destruição das lojas, o sofrimento dos comerciantes e as mortes de chineses_ reforçou esses estereótipos entre a população do país. É por isso que não há uma pressão interna para que o governo mude as suas políticas no Tibete.

Se quiser atenuar a oposição dos tibetanos à sua presença, o regime chinês precisa entender que não bastará apenas continuar despejando bilhões de dólares na região. Será necessário também priorizar medidas que permitam aos tibetanos participarem do processo de desenvolvimento como protagonistas ao invés de meros coadjuvantes.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras. 
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