Protesto de sindicalistas contra política industrial, em Brasília ( Pedro Ladeira - 3.abr.2012/France Presse)
Por José Carlos Martins, de Brasília
Peço licença aos leitores para aproveitar o tema palpitante da competitividade e da desindustrialização, tão presente no momento econômico, para me debruçar sobre essa questão sob a ótica brasileira. Achei oportuno fazer isso neste blog por duas razões. A primeira é o fato de as exportações chinesas para o Brasil e para outros mercados anteriormente dominados pelas exportações brasileiras serem parcialmente apontadas como responsável pela desindustrialização do país. A segunda razão é o fato de que as transformações ocorridas na economia mundial que vêm causando profundas mudanças no fluxo de comércio mundial terem seu epicentro na China.
Nas últimas semanas, temos assistido a uma série de iniciativas do governo brasileiro para aumentar a competitividade da indústria e de produtos brasileiros supostamente ameaçados pelo fenômeno da desindustrialização e pela competição com produtos estrangeiros, principalmente chineses.
Essas medidas de cunho tarifário, fiscal e creditício tentam responder aos clamores dos setores mais afetados pela competição bem como encontrar soluções para os problemas diagnosticados pelos órgãos do governo responsáveis pela política econômica e industrial.
Embora na direção correta e bem intencionadas, essas medidas trarão pouco resultado para o aumento da competitividade dos produtos industriais brasileiros. Correm o risco de serem efêmeras e ao mesmo introduzir outras distorções que terão de ser corrigidas no futuro. Elas precisam ser acompanhadas de medidas que realmente lidem com os problemas estruturais que afetam a competitividade da nossa indústria, aquilo que costumamos chamar de “custo Brasil”.
Esses problemas de competitividade estrutural sempre estiveram presentes na nossa economia, mas eram encobertos pela inflação desenfreada, pela desvalorização artificial da nossa moeda e por tarifas de importação proibitivas que por décadas protegeram a nossa indústria da competição externa e tornaram nossos produtos mais competitivos no mercado externo.
A administração da relação cambio-salário, chamada por alguns economistas de “competitividade espúria”, pois tinha como contrapartida o empobrecimento dos trabalhadores brasileiros, associada a tarifas de importação punitivas, eram as principais ferramentas de política industrial adotada por muitos governos brasileiros desde a década de 1970.
É dessa época uma das passagens quase cômicas do nosso folclore econômico empresarial, o enunciado da famosa Lei de Sauer, ex-presidente de uma grande indústria estrangeira no Brasil. Mestre no “lobby” pela desvalorização do cambio, dizia que em qualquer momento o cambio estaria sempre defasado em 30%!
Nos últimos anos, com a estabilidade econômica, maior abertura da economia, liberalização da política cambial, redução das alíquotas de importação e mudanças estruturais na economia mundial, ficou mais difícil a utilização do câmbio como fator de ajuste para a competitividade da indústria brasileira. E o rei ficou nu!
As razões para valorização do câmbio são várias e as mais mencionadas por empresários e governantes têm sido a “doença holandesa”, a “guerra cambial” e o “tsunami monetário”.
A “doença holandesa” decorre da valorização dos produtos primários, matérias-primas e alimentos exportados pelo Brasil. Isso traz um “tsunami” de dólares para o país e valoriza a nossa moeda, prejudicando a indústria. Infelizmente (ou felizmente) há pouco a fazer em relação a isso, pois os preços desses produtos são definidos pela oferta e procura no mercado internacional. E é muito positivo que países produtores de matérias-primas e alimentos sejam finalmente beneficiados por preços melhores.
Historicamente, esses países sempre foram prejudicados seja pela exploração colonial seja pelo aviltamento dos seus preços em relação aos produtos industriais produzidos pelas nações mais desenvolvidas. Esse fenômeno foi muito bem descrito pelo governador Leonel Brizola como a principal razão dos problemas econômicos do Brasil e denominado “perdas internacionais”.
Similarmente, a “deterioração dos termos de intercâmbio” foi chamada como a principal fonte do subdesenvolvimento das nações de industrialização tardia, como o Brasil, pelos economistas estruturalistas cepalinos e pelos teóricos da relação centro-periferia. Portanto, a reversão das “perdas internacionais” e da “deterioração dos termos de intercâmbio” é extremamente positivo para economia brasileira, e não negativo, como querem fazer crer alguns setores empresariais. O Brasil estaria obtendo preços melhores pelos produtos que exporta e adquirindo os produtos que importa a preços menores. Fica difícil achar que isso seja negativo para o nosso país e para os brasileiros, que têm hoje acesso a bens que jamais puderam ter no passado.
Chamar esse fenômeno virtuoso de valorização dos nossos produtos como doença é um pouco exagerado. A tendência de valorização dos preços dos produtos primários (matérias-primas e alimentos) produzidos pelo Brasil é irreversível, consequência de uma mudança no padrão de crescimento da economia mundial que nos favorece e não há muita coisa que possamos fazer para evitá-lo.
Aliás, o preconceito contra a exportação de produtos primários de menor valor agregado reflete o padrão antigo de deterioração dos termos de intercâmbio. Nos últimos dez anos, os produtos primários vêm sendo cada vez mais valorizados no mercado internacional, enquanto a enxurrada de produtos industrializados provenientes da China deprime os preços desses produtos, tornando a competição muito mais difícil, mesmo para países mais avançados tecnologicamente. Independentemente do valor agregado na produção, as forças de mercado têm feito o valor econômico migrar dos produtos industrializados para os produtos primários, e a China tem tudo a ver com isso!
Um país exporta mais aquilo que é mais competitivo, e o crescimento dos produtos primários nas exportações brasileiras reflete a maior competitividade desses produtos. Não obstante os problemas de competitividade enfrentados pela indústria brasileira, a queda de participação relativa do produto industrial na composição do PIB é mais consequência do grande crescimento dos preços dos produtos primários do que da queda absoluta do produto industrial.
Ao mesmo tempo, o desemprego no Brasil se reduziu a níveis recordes e o subemprego também, tanto assim que o exército de empregadas domésticas e babás a serviço da classe média brasileira diminuiu de forma tão acentuada que um famoso economista, verdadeiro mago na gestão da competitividade espúria da relação cambio-salário em seus tempos de ministro, indicou essa classe laboriosa para compor na relação dos “animais em extinção” publicadas regularmente pelo Ibama: “Quem teve, teve, quem não teve, não terá mais”!
A guerra cambial, movimento pelo qual algumas nações desvalorizam artificialmente suas moedas para aumentar sua competitividade, é uma prática soberana; o Brasil fez isso durante grande parte da sua história econômica mais recente. Mas nenhum país consegue fazer isso impunemente. Ou terá de destinar parte de seu superávit fiscal (nesse caso precisará tê-lo) para compra de dólares, o que é perfeitamente defensável do ponto de vista econômico, ou pagará com inflação e empobrecimento de sua população emitindo moeda local para mantê-la desvalorizada. Também aqui não há muito a fazer senão entrar no mesmo processo, gerando inflação uma vez que há muitos anos não temos superávit fiscal para sustentar essa estratégia impunemente.
Por fim, temos o tsunami monetário, causado pelas nações desenvolvidas e profundamente endividadas, o famoso “quantitative easing”. Essas nações se aproveitam da força, tradição e conversibilidade de suas moedas para emiti-las em profusão, buscando de um lado quitar parte das dívidas impagáveis acumuladas por alguns países desenvolvidos e de outro estimular suas economias combalidas. Dólares americanos, libras esterlinas, euros, francos suíços e ienes japoneses são emitidos em profusão, tanto para quitar as dívidas acumuladas como para contrapor a movimentos especulativos do mercado, ou seja, para estimular suas economias. Além de alterar o valor relativo dessas moedas, parte desse fluxo monetário migra para países como Brasil, que representa melhor alternativa de investimento, aprofundando o processo de valorização da nossa moeda.
Por outro lado, temos de considerar o fato que, se esses países não agissem dessa maneira, o aprofundamento da crise financeira nos países industrializados seria muito mais grave e afetaria indiretamente os outros países, inclusive o Brasil. Ruim com o tsunami monetário, pior sem ele!
Pelo exposto, fica evidente que temos pouca margem de manobra para administrar a questão cambial, pois ela é fruto de movimentos mundiais sobre os quais temos pouca ou nenhuma influência.
Portanto, só temos como opção enfrentar a questão do custo Brasil, esse inimigo solerte da competitividade da indústria brasileira. O custo Brasil resumidamente é a competitividade sistêmica da nossa economia. Enquanto a competitividade dos produtos primários é sustentada basicamente pelas vantagens comparativas ditadas pela natureza (existência de jazidas minerais de alta qualidade, condições climáticas e de solo favoráveis, recursos hídricos, insolação), a competitividade dos produtos industrializados depende da competitividade sistêmica ou adquirida. A competitividade sistêmica ou adquirida depende de políticas governamentais de longo prazo e também da engenhosidade e criatividade dos empresários locais.
Nesse particular, gostaria de traçar algumas comparações entre alguns fatores de competitividade sistêmica da economia brasileira comparativamente a economia chinesa, o que ajudaria explicar a assimetria competitiva entre os dois países.
Começamos pela mão de obra, que no Brasil é de duas a três vezes mais cara que na China. De um lado, temos uma legislação trabalhista muito mais rigorosa no Brasil em relação à China, mas o custo de vida na China é muito mais baixo que no Brasil. Uma comparação entre São Paulo e Xangai indica que o custo de vida na China é apenas 40% do custo no Brasil, e isso tem uma grande influência no nível de remuneração.
O nível escolaridade e de produtividade na China é maior do que no Brasil. Atribua-se isso à cultura confucionista ou à rigidez do sistema político chinês, o fato é que a mão obra chinesa é mais competitiva que a nossa.
Outro fator importante é a infraestrutura chinesa: estradas de ferro, estradas de rodagem, aeroportos, portos, saneamento básico, rede de distribuição de energia, sistema de transporte e comunicações. A China tem salário de país subdesenvolvido e infraestrutura melhor que muitos países desenvolvidos, e o custo de energia na China, embora não esteja entre os menores do mundo, é menor do que no Brasil e bastante competitivo internacionalmente.
As empresas que se instalam na China olham não apenas a competitividade para exportar mas também o tamanho do mercado interno em crescimento. Além dos fatores de competitividade sistêmica, temos a escala do mercado altamente atrativa. Hoje, a China é o maior mercado mundial de automóveis e de computadores, e a cada dia que passa vai se tornando o maior mercado mundial para outros produtos industrializados. Vantagens sistêmicas associadas à escala de mercado dão à China uma permanente vantagem não só sobre o Brasil mas também sobre outras nações industrializadas do mundo.
A China investe 50% do PIB, grande parte em infraestrutura. O Brasil investe apenas 20% do PIB, a menor parte em infraestrutura. Os gastos do setor público na China somam 13% do PIB, e no Brasil, 21%. Já a carga tributaria na China representa 23% do PIB, grande parte dela destinada ao investimento público, enquanto no Brasil a carga tributária chega a 34% do PIB praticamente toda ela consumida pela máquina pública e pelo serviço da dívida.
O Brasil tem carga tributária de país desenvolvido sem ter o mesmo nível de serviço e de cobertura social desses países. Nosso Estado retira da economia mais do que devolve em bens e serviços, e essa é a natureza central do custo Brasil, que vai se refletir indiretamente na competitividade das nossas empresas, principalmente daqueles setores que dependem exclusivamente da competitividade sistêmica.
O sistema político e econômico da China, sua cultura, seu povo sua história são diferentes dos nossos. Cada país é soberano para escolher seu caminho e nem sempre é possível emular modelos. Assim como não foi possível copiar o modelo americano ou europeu, não será possível ao Brasil copiar o modelo chinês. Mas, no mundo da competição global, cada país tem de encontrar seu caminho para competir em igualdade de condições, compensando suas deficiências com suas forças sob pena de ficar para trás no desenvolvimento econômico e social, este o objetivo primordial de toda nação.
O momento é de grande transformação e de ação, me fazendo lembrar aquele clássico de Bob Dylan, “The times hey are a-changing” que dizia em um dos seus trechos “and admit that the water around you have grown…then you better start swimming or you will sink like stone!”. Em português castiço, as águas estão subindo e é melhor você começar a nadar ou vai afundar como uma pedra!
Neste bravo novo mundo da globalização, não somente as empresas competem entre si, mas os Estados nacionais também. E seja por fatores culturais, políticos ou mesmo econômicos, a China tem se mostrado mais competitiva que o Brasil.
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale. Sua coluna é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Excepcionalmente, nesta semana foi publicada na quinta-feira.