Síndrome da China
29/02/12 07:52Por José Carlos Martins, do Rio de Janeiro*
Segundo o Aurélio, a palavra síndrome significa “conjunto de características ou de sinais associados a uma condição crítica, suscetíveis de despertar reações de temor e insegurança”. “Síndrome da China” foi nome de um filme estrelado por Jane Fonda e Jack Lemmon, na década de 70. O enredo tratava do acidente nuclear em uma usina americana cuja possível consequência seria a fusão do núcleo do reator e a perfuração da crosta terrestre até seu núcleo, continuando o caminho para sair do outro lado, na China.
Da mesma forma sugerida pelo filme, o rápido desenvolvimento da economia chinesa nos últimos 40 anos e de forma mais perceptível na última década reverbera em todas as direções e afeta todas as nações. Assemelha-se a uma síndrome, agora econômica, que se propaga pela superfície da Terra, projetando suas consequências para todos os cantos do planeta. De certa maneira, o que aconteceu na China nestes 40 anos é um fenômeno semelhante ao ocorrido nos últimos 250 anos com as nações mais desenvolvidas do Ocidente setentrional (Europa Ocidental e América do Norte), abarcando também alguns países da Ásia e Oceania que, por razões étnicas ou geopolíticas, se alinharam economicamente às nações líderes do Ocidente.
Durante o período iniciado com a Revolução Industrial, com epicentro no Reino Unido do século 18, essas nações tiveram seu nível de vida e desenvolvimento econômico catapultados dezenas de vezes acima das outras nações da Ásia, África e América Latina. No início do século 21, essas nações _com um contingente populacional não superior a um bilhão de pessoas_ concentravam grande parte da riqueza e do PIB mundial, relegando os restantes 6 bilhões a uma importância secundária em termos de riqueza e padrão de vida.
Embora esse verdadeiro “espetáculo de crescimento” das nações ocidentais tenha sido objeto de milhares de estudos e de livros _dos quais talvez eu tenha lido pouco mais de uma dezena em toda a minha vida_, me arrisco a mencionar, sob pena de excessiva simplificação, que, além da engenhosidade humana que sustentou grande parte desse desenvolvimento ocidental através das várias inovações, a começar pela máquina a vapor, ele foi alicerçado basicamente por três grandes transformações que afetaram essas sociedades ao longo destes 250 anos: 1) a evolução de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial; 2) a migração de uma sociedade rural para uma sociedade urbana; 3) a transformação de uma economia preponderantemente de subsistência em uma economia de mercado.
A industrialização trouxe consigo extraordinário crescimento da produtividade por meio da divisão do trabalho e da disseminação dos avanços tecnológicos; a urbanização, maior interação humana e sinergia das ideias. As cidades são os motores da inovação e também do sistema democrático. A migração de uma economia de subsistência para uma economia de mercado trouxe uma valoração mais adequada dos bens e serviços produzidos, agregando maior racionalidade ao processo de alocação de recursos. A fórmula do progresso econômico e melhoria de vida dos países se resumem numa única palavra: produtividade. Urbanização e industrialização alicerçadas num sistema produtivo direcionado pelo mercado são talvez o instrumento mais poderoso para atingir esse objetivo. É uma marca indelével em quase todos os casos de sucesso em termos de desenvolvimento econômico.
Neste particular, é interessante observar o fracasso da experiência soviética, que soube transformar uma nação agrária e subdesenvolvida numa grande nação industrial, uma sociedade rural em uma nação urbana. Mas não adotou a economia de mercado, mantendo-se fiel ao dogma do planejamento central e da ditadura do proletariado, com o controle estatal dos meios de produção. O fracasso da experiência soviética estaria alicerçado na rigidez dogmática do sistema econômico associado à falta de abertura democrática de sua sociedade.
Os chineses, seguidores do modelo soviético desde que Mao Tse-tung e o Partido Comunista assumiram o poder, em 1949, tiveram a sabedoria de perceber onde o sistema soviético tinha falhado e, muito antes da derrocada do modelo socialista russo, adotaram em sua economia e em sua sociedade as modificações necessárias para não cair na mesma armadilha.
Quando Deng Xiaoping, há pouco mais de 40 anos, iniciou o processo de abertura da economia chinesa através de suas quatro modernizações, talvez não tivesse ideia clara das repercussões que essas mudanças trariam para o mundo. Ou, talvez, estivesse simplesmente seguindo os ensinamentos de Mao, que, em uma de suas citações, dizia que “para acabar com o fuzil é preciso pegar no fuzil; para acabar com a guerra é necessário fazer a guerra”. Para enfrentar o poder do Ocidente, personificado no poderio econômico e bélico americano, seria necessário abraçar de certa forma seu modelo econômico.
O interessante é que a abertura da economia chinesa e a aceitação da propriedade privada dos meios de produção se iniciaram pelo setor externo, com a vinda de capitais e tecnologias ocidentais, principalmente dos Estados Unidos. Ávidos por arbitrar as vantagens de custo oferecidas pela farta e disciplinada mão de obra chinesa, além da possibilidade de desfrutar no futuro de um mercado de mais de um bilhão de pessoas, o Ocidente proporcionou à China não só o capital e a tecnologia necessários para alavancar a economia chinesa, como também o acesso a seus mercados.
Como diria Lênin, “os capitalistas venderão a corda com a qual serão enforcados”. Neste caso, não só venderam a fábrica de cordas como também compraram a própria corda! Na verdade, isso foi bastante favorável à economia ocidental, que conseguiu por muitos anos crescer de forma bastante acelerada, ajudada pelo efeito deflacionário da oferta chinesa.
Desse princípio totalmente dependente do Ocidente em termos de capitais, tecnologia e acesso ao mercado, os chineses, com a praticidade que lhes é particular, foram adotando mais e mais o modelo econômico ocidental, liberando forças que estavam contidas por mais de 30 anos de experiência malsucedida de coletivização forçada e planejamento central. Ao final da Revolução Cultural, a China era um país pobre, rural, onde grande parte de sua população vivia muito mais numa economia de subsistência do que propriamente numa economia de planejamento central.
Os chineses foram capazes de fazer adaptações necessárias para flexibilizar o modelo de planejamento de central. Flexibilizaram a propriedade privada dos meios de produção e, apesar de manterem uma miríade de empresas estatais ainda muito poderosas, conseguiram criar uma economia de mercado competitiva e moderna, combinando a racionalidade dos mercados com o direcionamento do planejamento central.
Não obstante o forte controle do Estado chinês sobre sua economia e sua sociedade e alguns retrocessos ocorridos na área política durante esse período de liberalização, a marcha tem sido positiva com algumas paradas durante o caminho, mas nunca com retrocesso. Todo ano a economia chinesa se torna mais aberta e mais competitiva. Num curto espaço de tempo, a população urbana da China passou de pouco mais de 15% para 50%; sua economia baseada na agricultura se transformou na segunda maior economia do mundo, suplantando os Estados Unidos como a primeira nação industrial. Seu sistema econômico _que, ao final da década de 70, era um misto de subsistência e planejamento central_ se transformou numa pujante economia de mercado e na maior nação exportadora de bens, ultrapassando nações altamente industrializadas e exportadoras como Alemanha e Japão. Tudo isso em apenas 40 anos!
Neste momento de inflexão na economia mundial, assoberbada com os problemas de endividamento e estagnação econômica nos países ocidentais, não obstante seu espetacular sucesso dos últimos anos, a China também enfrenta grandes desafios. Mas dispõe de uma economia sólida e equilibrada se comparada à maioria das economias mais desenvolvidas.
A visão muito mais pragmática do que dogmática dos chineses e seus líderes é outra grande vantagem neste momento. Durante todo esse período, os chineses demonstraram extraordinário senso prático, orientando a economia muito mais em função daquilo que funciona bem do que em função de teorias e dogmas _inclusive aqueles do próprio modelo comunista.
“Enriquecer é glorioso”, “Não importa a cor do gato desde que ele pegue o rato”, ”Socialismo não é pobreza”. As frases emblemáticas de Deng Xiaoping para justificar as mudanças na economia chinesa são até hoje utilizadas como exemplo de visão e pragmatismo. Não há qualquer razão para supor que os chineses vão alterar essa orientação filosófica na forma como conduzem os destinos de seu país. E esse pragmatismo é o maior indicador de que eles saberão se adaptar à nova situação e manter o crescimento de sua economia.
Ainda há muita gente para mover dos campos para as cidades, ainda há muita industrialização e infraestrutura por construir. E ainda há muito espaço para avançar em direção a uma economia de mercado mais completa. Ainda há muito a expandir no consumo interno e para reduzir as desigualdades sociais. Em outras palavras, até atingir os limites de crescimento alcançados pelas nações mais desenvolvidas do Ocidente, a síndrome da China vai continuar!
José Carlos Martins, economista, é diretor de Ferrosos e Estratégia da Vale.
*A partir desta quarta-feira, o economista José Carlos Martins passa a escrever quinzenalmente para o blog.